Friday, December 14, 2007

AS COISAS POSTAS


Foto:Edivaldo de Jesus Teixeira

E pôr-se uma coisa
sobre a outra
a carne sobre ossos
e a pele
e a luz sobre o lago
e a árvore sobre a pelve
e o musgo.

E pôr-se a luva sobre a mão
do assassino
a epiderme e os sinais digitais
sobre ela postos
o segredo posto sobre o crime.

O conceito posto sobre a obra,
seus desígnios insondáveis.
O olhar do autor da obra
sobreposto à imagem ( palavra-objeto )
que a consubstancia e exprime.
O mapa posto com contornos
que o geógrafo pondera e imagina :
a fronteira da fome entre os povos
posta assim como uma sina.

E a imagem posta sobre
Santo Sudário,
em que tempo, com que perícia
as mãos a exprimiram?
Em que estábulo obscuro ou oficina,
com que escopo a teceram entre fímbrias,
com que tinta indelével e tão fina
que ainda hoje se percebe suas linhas?

A colcha posta sobre a amante
deixando entrever os seios túrgidos,
a pelve sobressaindo urgente e escura,
com que desejo se teceu tão vívida forma
dando-lhe o gosto do amor e da aventura?

E aquela maravilhosa pintura
posta no teto da Capela Sistina?
Com que louvor pintou-a Michelângelo
tecendo-a poro a poro, em que dia,
com que régua cada ângulo ele media,
cada contorno, expressão ou agonia?

E o rosto do outro posto no espelho
procurando a identidade absoluta
desse enigma,
pois postas ali estão surpreendentemente
as duas faces do mesmo paradigma.


Poema de Edivaldo de Jesus Teixeira premiado no Concurso Nacional de Poesia, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado do Paraná em 2007.

Monday, November 19, 2007

MARCELO ARIEL-ENTREVISTA PARA NICODEMOS SENA :














NS – Lendo os poemas que escreveste ao longo de 30 anos, e que só agora, quando completas 41 anos de idade, serão enfim publicados, percebe-se o que se pode chamar de uma “estética andarilha”, que se desloca com versatilidade por espaços e temas vários. Pode-se imputar alguma influência da tua origem cigana nessa estética?

MARCELO ARIEL – Talvez não, porque essa origem cigana se perdeu no tempo, é algo que faz parte da formação do meu inconsciente, das estruturas obscuras da minha interioridade. O Jung, um autor muito importante para minha formação, escreveu em sua autobiografia que nós somos apenas a história de um inconsciente que se realiza e os aspectos ciganos da minha trajetória e da minha atualidade, lembrando que vivo há mais de vinte anos da venda itinerante de livros usados, subindo e descendo a avenida principal de Cubatão e cidades vizinhas, praticamente todos os dias, me liga a esse passado totalmente enevoado... Na verdade meus antepassados da parte da minha mãe vieram do Egito e se estabeleceram em Portugal e depois no Brasil, isso é uma intuição objetiva que tenho, pois não há nenhum registro dos excluídos que fundaram esse país. A parte cigana é a mais remota e está ligada ao meu pai, que eu julgava morto e, depois de trinta e quatro anos, reapareceu recentemente.
Eu mimetizei as memórias enevoadas dos meus antepassados através do meu estilo de vida despojado e estóico e isto está no centro de tudo o que escrevo, porque não escrevo para fugir de mim mesmo, mas para realizar a fusão impossível entre os meus mortos e os vivos através da poesia. De algum modo a poesia é a imaginária recuperação de um rosto primordial irremediavelmente perdido, é a tentativa de despertar a outra face citada pelo Poeta Yeshua Ben Rá, que é como Cristo era conhecido no Egito Antigo.


NS – Num mundo de economia “globalizada” e produção de lixo cultural em altíssima escala, no qual não só as fronteiras políticas – mas também a do bem e do mal, do certo e do errado – caíram por terra, haverá ainda uma função para a poesia?

MARCELO ARIEL – Como disse acima, promover a recuperação do irremediavelmente perdido. A poesia é a medula de todas as primeiras grandes religiões, Novalis afirmava que ela era a religião original da humanidade na Idade do ouro; quando digo Idade do ouro, estou me referindo a um tipo de humanidade que foi desconstruída, destroçada e reduzida a uma criancinha-burra e esquizofrênica fumando maconha e tomando ecstasy no estacionamento do shopping, ou seja, de cabeça para baixo... Voltando à função da poesia... A maior talvez seja a de ser um registro do modo como deveremos nos comunicar num futuro que intuo será uma repetição dessa Idade do ouro de Novalis, algo bem longe da República de Platão, que pode facilmente ser nazificada. O lixo cultural, ao qual você se refere, é produzido para versões simbólicas dos shoppings e dos supermercados, por exemplo: As livrarias em sua maioria não passam disso, e quando muito são bons açougues metafísicos ou literários que em essência também são seções de um grande Ceagesp Cultural... A poesia, e me refiro à alta poesia, nisso, tem a mesma função, das frutas e hortaliças encontradas no lixão, no final da feira ou do mercadão da indigência cultural; sempre aparecem os catadores de poesia, e eu sou um deles. Sou do “Comando” dos catadores de poesia. Aliás, uma função nobre da alta cultura, seria a de invadir as zonas de exclusão e fundar uma espécie de PCC Cultural ou ela será apenas o que tem sido: mais um dos braços do marketing da mistificação. Mas quando falo em ‘Alta cultura’ estou sendo novamente um otimístico.

NS – Vislumbra-se na tua poesia como que um rosto, ou melhor, muitos rostos, que tentam romper o obscuro, num ambiente asfixiante, sórdido e pervertido; também se ouvem vozes, não das sereias de Ulisses, mas de seres repulsivos, que nos convidam para dentro de um sonho, ou de um pesadelo, ou da loucura. O que espera o poeta dentro de um mundo assim refletido?

MARCELO ARIEL – Como Anne Sexton, uma grande poeta suicida norte-americana, ou melhor, uma grande poeta suicidada pelo estilo de vida americano, eu também faço da poesia uma espécie de ‘exorcismo-às-avessas’: ao invés de expulsar os meus demônios, tento invocá-los e chamo todos pro pau, quando apanho é o rosto e a voz deles que um leitor sensível como você é capaz de vislumbrar; quando ganho a luta, o poema é escrito. O que espero dentro desse mundo, que afinal, é a minha sombra abissal? Vencer os demônios. Literalmente isso.

NS – Quais os possíveis significados da palavra “suicídio” que aparece com certa freqüência em teus poemas?

MARCELO ARIEL – Nos meus poemas essa palavra é uma metáfora para o modo como a vida está organizada dentro de uma sociedade de consumo como a nossa, que ainda não possui uma estrutura e organização societal voltadas para a civilização e para a educação estética e ética da pessoa humana, que valorize o tempo de viver. Sou autodidata, passei a infância e a adolescência freqüentando bibliotecas públicas, tive acesso apenas ao básico das culturas greco-romana e oriental na forma das traduções para o português dos livros mais conhecidos destas três civilizações, mas o pouco que li foi suficiente para que eu fosse capaz de compreender esse óbvio, que somos constantemente suicidados. Infelizmente, alguns, ao perceberem isso, transformam uma metáfora da destruição em um fato consumado para si mesmos; meu irmão mais velho, por exemplo, cometeu suicídio. Por isso, há também a possibilidade dessa palavra nos poemas estar representando a figura desse meu irmão, de modo simbólico, mas o propósito mais elevado do uso dessa palavra é evocar o poder que ela tem enquanto conceito de afirmar a vida através de sua negação, o que parece paradoxal. Creio que todos os poetas mais cedo ou mais tarde enfrentam esse demônio do paradoxo. Creio também que o não-suicídio individual ou coletivo será o maior desafio enfrentado pela humanidade nos próximos séculos. Como sou um realista esperançoso, espero que ela vença o desafio. Você já notou que a maioria dos heróis da mitologia grega, quando parte para sua jornada, é chamada de suicida. Teseu antes de entrar no labirinto, Ulisses antes de partir em direção à Ítaca, Perseu antes de enfrentar as Harpias... Isto nas versões que li, que eram adaptações para crianças. Mas o que realmente estou querendo dizer com isso?

NS – Isso remete à idéia de missão civilizadora do herói. O que pode fazer o poeta em face do “minotauro” neoliberal que devora a carne de milhares de brasileiros lançados na miséria e engole a nossa energia criadora? O poeta tem uma missão civilizadora?

MARCELO ARIEL – Sim, a poesia como um elemento da alta cultura, pode ter essa característica, mas não podemos nos esquecer da lição dos membros do partido nacional socialista da Alemanha , que conheciam e apreciavam profundamente O Fausto, A Bíblia, Bach, Holderlin, Wagner, Lessing... enfim, a mais alta cultura e isto não os impediu de planejar e botar para funcionar os campos de concentração onde se praticou o assassinato em massa com métodos e planejamento industriais. Talvez a missão do poeta seja a de ser ‘um vírus no sistema’, seja ele neoliberal, nazifascista e etc. O poeta é, para qualquer tentativa de enquadrar o ser humano num sistema, uma peça-fora-do-lugar e algo perigos; os poetas e escritores hoje são inofensivos e há uma profusão de ‘poetas oficiais’ e ‘clubes oficiais de poesia’, saraus e vários tipos de grupos de terapia poéticos com suas antologias e chás de cozinha filosóficos com poetas em boutiques de livros e etc.; considero esse dado mais sinistro do que a pasmaceira geral que corrói a alma do nosso povo; há uma nítida apartação entre os poetas e a realidade suja do ‘em torno’, que é no máximo citada como cenário dos poemas e não como centro de onde eles se irradiam, que é o que tento fazer nos meus, apesar da guinada maldita para a névoa metafísica. Quanto à nossa energia criadora, ela permanece intacta porque provêm de fontes orais; o João Guimarães Rosa percebeu isso; a relação entre as nossas fontes orais e a dos antigos filósofos, as nossas raízes mais profundas são as que nos ligam às origens da própria civilização, Roma e Grécia, através da matriz lingüística; há um Brasil urbano que podemos chamar de megafavelizado distante das tradições orais e da ética cavalheiresca do sertanejo, que é tão rigorosa e civilizadora quanto à dos filósofos estóicos... Como você vê, o “Minotauro” neoliberal pode a qualquer momento ser cercado por neo-jagunços do narcotráfico ou anulado pelo próprio movimento de sobe e desce das engrenagens obscuras da economia mundial. A miséria continuará sendo tratada como ‘um patrimônio’ e dando lucro, e o poeta não terá nada a ver com isto a não ser que se torne um terrorista, um homem-bomba. O que, como sabemos, não muda as coisas. Acho que divaguei muito, espero ter respondido sua pergunta.

NS – O que já acontecera com a crítica, que se deslocou dos rodapés dos jornais para as insossas teses acadêmicas, também vem acontecendo com a produção literária, para a qual, não de forma oficializada, mas efetiva, exige-se dos autores que apresentem títulos universitários ou estejam em vias de poder apresentá-los, fechando-se as portas aos autodidatas. O que pensas sobre isso?

MARCELO ARIEL – Considero as universidades culpadas por boa parte da indigência cultural reinante no Brasil. Qual é a função social das universidades?
Elas não deveriam ser todas abertas, gratuitas e sem muros?
Que planejamento para o país foi pensado e proposto criticamente pelas universidades nos últimos dez anos? É óbvio que os melhores quadros técnico-científicos estão lá, então por que eles não influenciam em nada a cultura política dos poderosos, que continuam a praticar a mesmíssima política da época do descobrimento com algumas variações para-americano-ver e uma ou outra exceção personal, uma ou outra grande personalidade se destaca aqui ou ali, é a lógica do futebol aplicada à política e vice-versa. Nas universidades idem, os reitores são prefeitozinhos tão alienados da nossa realidade concreta quanto os juízes do Supremo, os grandes industriais, os mega-empresários, banqueiros e etc. Os autodidatas estão dentro da lógica de exceção, um Villa Lobos, um Machado de Assis e assim por diante são acidentes como um Mozart, um Van Gogh e etc. Agora, se as faculdades abrirem as porteiras de graça para todos, as possibilidades de aprimoramento aumentam, seria a democratização do conhecimento, mas para isso teriam de derrubar os muros e o cargo de reitor deveria deixar de ser um cargo ligado indiretamente e às vezes até diretamente à política partidária. Além disso, elas são mal planejadas, as privadas parecem shopping-centers e as públicas, sem comentários...
Veja só a USP, que foi construída bem longe dos centros urbanos, praticamente no meio do mato, é óbvio que o resultado de tanta apartação e distanciamento é a alienação e a nulidade política de gerações de alunos. Os autodidatas são um milagre que se ingressassem nas universidades como elas estão hoje seriam anulados pela burocracia. Quanto às teses, quando não são uma simples clonagem do pensamento do professor-orientador-manipulador, ficam condenadas ao limbo dos arquivos e não são nem publicadas. E as realmente originais e dignas de nota, quem as lê fora de um círculo restrito de eleitos e pesquisadores? Resposta: Talvez os autodidatas. Acho que seria mais benéfico para todos se o ensino fundamental, o médio e o superior aqui fossem interligados, gratuitos e com o mesmo padrão de qualidade dos Estados Unidos e da Europa. A Crítica Literária? Bom, não há nenhum Carpeaux, nenhum Anatol Rosenfeld, nenhum Evaldo Coutinho em atividade e se houver está há anos-luz de qualquer redação de jornal ou revista, talvez escreva em alguma revista eletrônica. Aprendi muito lendo os suplementos literários de “O Estado de São Paulo”, Caderno de Sábado do “Jornal da Tarde” e o Folhetim da “Folha de São Paulo”, que circularam nos anos 80 e foram extintos. Cheguei a ler bons ensaios nestes suplementos. Hoje o que se pratica é o compadrismo literário. No Brasil nos últimos dez anos não apareceu ninguém com a coragem e rigor intelectual de um Edward Said. Recentemente tomei conhecimento dos poemas do iraquiano Badr Chaker Es-Sayyâb, os jornais e revistas brasileiros publicaram mais de 1000 páginas sobre o Iraque e ninguém teve a decência de chamar a atenção para a obra desse poeta, que não deve nada ao ganhador do último Nobel, o turco Ophram Pamuk. Resumindo: Não há um verdadeiro interesse em literatura, nem nos jornais, nem nas grandes editoras, nem nas empresas que ganham ‘incentivos fiscais’ realocando milhões dos impostos para peças com atores ‘globais’, filmes inócuos e artificiais que são meros cacoetes do neo-realismo italiano misturado com a estética do vídeoclip e outras picaretagens; bom, se os autodidatas são excluídos do poder de decisões na chamada cena cultural... O futuro será dos autodidatas, ao menos no crime e na política.

NS – Embalando teus versos, nota-se como que o irreverente ritmo do rap; em consonância com a sintaxe intencionalmente caótica do poema visualiza-se a áspera realidade das periferias, onde se confinam os excluídos, os estranhos (estrangeiros) dentro da própria cidade ou do país onde nasceram. Além da nítida influência simbolista, qual outra tradição influenciou o ritmo de tua poesia?

MARCELO ARIEL – Procuro dar aos meus poemas um ritmo e cadência próximos do blues, do samba ou do R.A.P., por serem formas de expressão provenientes da tradição oral, que, como disse acima, é a coluna que sustenta a alma e a identidade cultural do Brasil. Aproximar cada vez mais o poema das formas originárias da tradição da oralidade é explorar através do poema a linguagem coloquial, como um instrumento radical de transmissão de conteúdos da alta cultura.
Talvez o poema possa fazer uma ponte entre a Atenas dos filósofos gregos, o Sertão dos vaqueiros, a Caatinga dos jagunços, o Quilombo dos negros e a Floresta Sagrada dos índios e caboclos, ao incorporar signos da oralidade presentes no samba, no R.A.P. e no blues, mas isto é uma tese arriscada, posso estar enganado, por isso preciso fazer várias leituras nas zonas de exclusão que são a fusão em negativo de todas as realidades citadas acima, e debater com os moradores as questões de forma e conteúdo, de um modo simples e desmistificador. Gostaria de ser recebido nestes lugares, como os sambistas eram/são recebidos nos Morros do Rio e os cantores de blues eram/são no Mississipi. O poeta é o instrumento transmissor da alta cultura nestes meios, através da incorporação dos meios de produção da cultura oral.
Neste sentido, Love in vain de Robert Johnson e O mundo é um moinho do Cartola e Joseph Beuys são meus paradigmas, com uma diferença: onde eles falam de amor e desilusão, falo desses mesmos temas de outro modo, e os resultados, ali, cara-a-cara, serão praticamente os mesmos. O que estou propondo está há anos-luz dos saraus e demais eventos lítero-musicais. É algo selvagem, que só tem paralelos, repito, nos cantores do samba de terreiro e nos cantores do início do blues, mas será essencialmente: A POESIA FORA DE SEU LUGAR OFICIAL. Por isso, e pensando nessa abordagem mais pé-no-chão da poesia, que incorporei elementos formais das letras do R.A.P., mas enquanto os rappers falam de polícia e miséria, eu falo de polícia, miséria, violência, Baudelaire, Jorge de Lima e Espinosa.

NS – Nascendo pobre e cedo perdendo a mãe, trabalhaste como pedreiro, faxineiro, jardineiro e outros ofícios não menos pesados. Poderias falar um pouco dessa atribulada trajetória pessoal e de como, em meio às adversidades de uma vida marginal, num dos lugares mais violentos e insalubres do mundo que é Cubatão, buscaste nos livros e na cultura a superação dos problemas, enquanto milhares de jovens brasileiros, nas mesmas ou em até melhores condições, se afundam nas drogas e na delinqüência social?

MARCELO ARIEL – Cubatão é hoje uma ilha de exclusão social cercada por favelas com dez mil habitantes de um lado e indústrias bilionárias do outro, uma espécie de cenário para uma versão surreal e terceiro-mundista do filme Blade Runner de Ridley Scott. Bem, fui refém da cultura das favelas, leia-se narcotráfico, porque meus melhores amigos de infância eram traficantes e ladrões de carro e por pouco não me tornei eu mesmo um traficante. O narcotráfico é o braço mais poderoso do capitalismo globalizado, o capitalismo-periférico, ele é hoje a grande multinacional da angústia, principalmente da angústia juvenil, que se projeta como um niilismo-burro e pouco prático, um desencantamento pelo mundo e uma autonomia esfacelada que se manifesta como um sentimento de auto-destruição, vazio cultural e educacional, que alimenta o narcotráfico. Obviamente também fui um refém das indústrias, trabalhei durante anos, como faxineiro em várias, Cosipa, Rhodia e etc. Conheço os dois lados do ineficiente projeto capitalista. Como faxineiro da mão de obra industrial, que ainda é conceitualmente uma mão de obra escrava, me lembro que na Rhodia havia um enorme aquário de vidro, no refeitório, separando os chefes, ou seja, os capatazes, dos operários; e na favela, nas bocas de fumo, existe uma hierarquia desordenada e dividida em células confusas, imitação piorada da estrutura paramilitar de grupos guerrilheiros como as FARCS, que se associa ao narcotráfico. A poesia entra nesse contexto como um enfrentamento do vazio proposto por estes dois projetos de seqüestro, estupro e esquartejamento do espírito. O que encontrei no exercício da poesia foi, em poucas palavras, um sentido maior para o meu egoísmo. No fundo, o maior poeta de todos os tempos, o Qoélet, autor do Eclesiastes, estava certo: Tudo é vaidade, mas a poesia, quando é realmente vivida como uma verdade da existência do indivíduo, é capaz de dar um sentido elevado para o egoísmo e para a vaidade, um sentido que transcenda o mercado. Mas não só a poesia, a arte em geral, quando é autêntica e leva em conta a realidade exterior a partir de um centro interior, é capaz disso. Van Gogh não é um banco, Picasso não é uma marca de automóvel.

NS – Qual o conselho que darias aos jovens que almejam um dia merecer o nobre designativo de “poeta”?

MARCELO ARIEL – Que antes leiam “Cartas a um jovem poeta” do Rilke, que sabia mais das coisas do que eu, e ainda as obras completas dos norte-americanos Emily Dickinson e William Faulkner e a dos brasileiros Jorge de Lima e Lima Barreto. Penso que o realmente essencial é que os textos estejam a altura da grande tradição de escritores que realmente tinham algo a dizer, mas para sabermos disso precisaríamos de uma crítica menos míope e canalha e de leitores menos analfabetos. O surgimento de uma nova geração de grandes críticos e de grandes leitores é mais importante do que o aparecimento de um grande poeta. Temos com certeza grandes poetas anônimos, inclusive dentro da cultura oral, mas teríamos críticos capazes de ressonância e do reconhecimento deles? O desânimo e o desgosto se tornam venenos para os chamados novos escritores. Essa será uma questão a ser resolvida por eles, que terão de se tornar artistas e críticos ao mesmo tempo, como o foram Eliot, Wilde e Auden, por exemplo mas isto obviamente dentro do nosso contexto de nação em desenvolvimento, será algo totalmente diferente .

Friday, June 29, 2007

APÓS A LEITURA DE ALMÁDENA :



Os 12 poemas do livro formam uma tessitura de silêncios que são como uma película que recobre a idéia-síntese que atravessa a obra de Mariana . A idéia do poema como veículo dos sentidos e da urgência do Sagrado, de um sagrado laico que atravessa as coisas e os fatos e é de um modo sutil 'pescado' pela rede de palavras & contemplação de poetas como ela. ( E Rilke, Jorge de Lima e Saint John Perse antes dela)
Mariana consegue neste Almádena estabelecer um diálogo com o centro da crise do nosso tempo, os poemas do livro são costurados por excertos do Padre Antônio Vieira e isso a meu ver reforça o caráter de urgência deste diálogo entre o sagrado e esta crise que têm na Alma, identidade inominável do ser para além das fronteiras, seu núcleo. Marco Lucchesi na orelha do livro escreve: ' Mariana terá que se haver com os limites do silêncio..' Ora nos limites do silêncio dormem a loucura, o absurdo e o caos incubados no cotidiano e na natureza, desde seu primeiro livro ' Trajetória do antes', Mariana tem enfrentado estas novas Parcas com a delicada força deste silêncio soprado em seu ouvido pela mesma interioridade secreta que constrói dentro destes silêncios a música do Poema, esta música que ecoa em nossa atualidade e continuará ecoando na atualidade do amanhã como o som daquele sino do filme Andrei Rublev de Tarkovski .

Marcelo Ariel

Sunday, June 10, 2007

YARA CECIM :



Por NICODEMOS SENA*


Foi com imenso prazer que reli os “contos fantásticos da Amazônia”, de Yara Cecim, que a Editora Cejup relançou em 2004, sob o título de “Lendário”. Ler as narrativas de Yara Cecim é uma experiência ímpar. Para começar, a gente se sente como a narradora de um dos contos (ou seja, como a própria autora), numa daquelas calçadas altas das pequenas cidades e vilarejos da Amazônia, onde, "ao cair da tarde, as famílias punham as suas cadeiras de balanço que iam e vinham, enquanto a bandeja de prata, com as xícaras de porcelana chinesa, corria a roda, animando os mais sonolentos". A “cadeira de balanço” assume aí a mesma função da “fogueira” em torno da qual os primitivos habitantes da região se reuniam, depois de um dia cansativo, para contar histórias.Yara Cecim nasceu no dia 13 de maio de 1916, no sítio Caxambu, às margens do rio Tapajós, no município de Santarém, oeste do Pará, Amazônia brasileira. De sua convivência com os mitos e lendas da região, extraiu a matéria-prima de seus contos. Trata-se de uma exímia contadora de histórias, um talento nato. Entre os escritores da Amazônia, Yara Cecim é o que melhor soube verter a tradição oral dos povos amazônicos para literatura culta. E o fez com a simplicidade e a paciência de uma Penélope que, durante anos (por amor à Vida, em sua pureza de mulher totalmente dedicada à família), evitou qualquer veleidade literária, estreando em livro só aos sessenta anos de idade.Os premiados contos do “Lendário” haverão de se constituir, com o passar dos anos, em importante fonte de inspiração para muitas gerações de jovens escritores da Amazônia. Pois Yara Cecim demonstra estar ciente do sistema econômico que se alimenta das riquezas (e muitas vezes do próprio sangue) da região. No conto “A velha do casebre”, por exemplo, faz alusão ao astucioso escambo realizado na “Venda”, onde o personagem Mundico coloca o saco (com peixes) na balança e seu Manduca, dono do estabelecimento, confere o peso, passando a discriminar a mercadoria que o outro irá levar: arroz, feijão, sal, querosene, sabão, um corte de alfacinha, papel de abade, um pouco de fumo forte, migado, e dois dedos de pinga (todos sabemos os efeitos deletérios do vício da cachaça que o colonizador introduziu na vida de índios e caboclos). Entretanto, a escritora desloca o seu maior interesse para o rico imaginário que alimenta a cultura amazônica. E não faz isso para fugir do “real”, mas em busca da “fala” abafada dentro de um sonho que virou pesadelo (o pesadelo da dominação a que foi submetida a sua terra).E é na busca desse algo que se perdeu que Yara Cecim, de modo consciente ou não (pouco importa), construiu o fio e o ritmo dos seus maravilhosos contos. Mas a simplicidade de sua voz narrativa é apenas aparente, pois esconde a sofisticação de um gênero literário que se tornou complexo nas mãos de extraordinários narradores de diversas épocas e lugares – desde o autor anônimo de “Os escritos de Saragosse” ou a Sherazade das “Mil e uma noites”, até Hoffmann, Gautier, Nerval, Poe etc.Temas caros ao gênero fantástico aparecem no “Lendário”, como a entrada em cena do elemento sobrenatural, que gera espanto e hesitação no leitor, e a metamorfose entre os seres, o que elimina a fronteira entre a matéria e o espírito (tais temas também foram desenvolvidos por Vicente Franz Cecim, nos livros de “Andara”, e por mim, em “A noite é dos pássaros”). Em “A porca e o soldado”, a história de uma grande porca, que teria sido vista por algumas pessoas quando voltavam de uma festa e que foram perseguidas por esse animal, que batia os dentes, espumava furiosamente e tinha uns dois metros de comprimento, com orelhas enormes que balançavam, quase arrastando no chão. A porca, como depois se descobriu, era uma velha da cidade, que assim cumpria o seu fado. Esse conto faz lembrar da lenda “Quando os índios Caxinauá tinham virado porcos”, segundo a versão livre de Herbert Baldus baseada na tradução literal de Capistrano de Abreu (“Lendas dos índios do Brasil”). Noutro conto, “Taú-Taú”, um cozinheiro de acampamento, enquanto aguardava sozinho os companheiros que haviam ido ao trabalho, viu irromper na clareira uma horda de animais, que não podia distinguir se eram criaturas humanas ou macacos, de todos os tamanhos. Antes ouvira vozes que se aproximavam e ele não conseguia entender se eram gritos, uivos ou lamentos. Os homens (ou macacos?) retalharam e trituraram com seus dentes todos os homens do acampamento, menos o cozinheiro. Depois ficou claro que se tratava dos homens-macacos que vieram das entranhas da mata devorar a carne (e a alma) dos humanos, em ritmo de pesadelo. Não é à toa que também este conto faz lembrar de uma lenda, “A caveira rolante”, recolhida entre os índios Tembé do Pará e Maranhão. Na lenda, os caçadores deixaram só um menino na aldeia, quando se fizeram ouvir vozes de corujas, onças e outros animais noturnos, de permeio com gemidos humanos e o estalar de ossos quebrados. Na lenda e no conto havia ossos triturados e pedaços de carne humana e ninguém acreditou nos que contaram as histórias, tomando-os por loucos. Pois o imaginário amazônico muitas vezes parece loucura, mesmo para quem dele se alimenta. Nos contos de Yara Cecim os peixes (seres “reais”) e as sereias (fruto de “fantasias”) nadam nas mesmas águas (v. o conto “Casa branca da praia”); a morte se denuncia na voz das pessoas e no sopro dos pássaros e das coisas (“Faltava algo na voz de Antônio nessa tarde” – em “O vaqueiro que a vaca matou”); e os macaquinhos “são gente como nós” (em “Sino Salomão”).É compreensível que aconteça isso nos contos de Yara Cecim. É que seus motivos não são os mesmos dos de seus confrades estrangeiros. Enquanto Poe e Nerval, por exemplo, sofreram na infância com desarranjos familiares, Yara Cecim cresceu num cálido ambiente familiar, sem excêntricas inquietações que pudessem explicar o cunho fantástico de suas narrativas. Através da pena mágica de Yara, o impossível aconteceu, isto é, o portentoso contexto amazônico (com suas vastidões e belezas naturais), que sempre desorientou a quantos se atreveram a desenhar literariamente a vida amazônica, desta vez não invadiu o texto, mas encontrou a sua expressão mais cabal e adequada.

*Nicodemos Sena é escritor e jornalista paraense radicado em São Paulo, autor, entre outros, de “A espera do nunca mais - uma saga amazônica” (Editora Cejup, 1999, Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos, da União Brasileira de Escritores/RJ).

Saturday, June 09, 2007

DAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O MORTO

DAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O MORTO*

Estás morto na tarde
sob véus de cera e velas
sob tua própria sombra.

Estás morto na noite
com teus sonhos e caminhos
sob paredes de alfombra.

Estás morto no leito
com tuas pedras e cristais
sob séculos de insônia.

Estás como tudo que é inerte
já não cantas nem refletes
a vida em que te agarraste.

Estás na envergadura das hastes
fuga de sons e relâmpagos
nada mais claro que a face

que tens curva sobre os ombros
nada mais oco que o prisma
sobre o qual inerte abismas.

Estás morto na tarde
no súbito riso que velas
mais morto te enovelas
em torno da solidão.

Do que houvera de arreios
posto sobre tua loucura
transformaram em veias
para te mascarar a amargura.

Estás morto no dia
como o que na extensão se anula
e é óbvio, ainda giras,
no vazio que em ti perdura.

*Poema de Edivaldo de Jesus Teixeira, do livro "O homem deserto sob o sol" (no prelo).

Sunday, April 29, 2007

O POEMA ESSENCIAL :



Desenho de Argemiro Antunes.

Friday, April 20, 2007

E OS PÁSSAROS POUSARAM SOBRE O MEU PAPEL: um estudo sobre o romance A NOITE É DOS PÁSSAROS, do escritor NICODEMOS SENA (Rio de Janeiro, 2006)

E OS PÁSSAROS POUSARAM SOBRE O MEU PAPEL

Por Julia Valesca Pais*

(Monografia apresentada para conclusão do curso de Letras – Português/Inglês da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, Brasil, 2006. Orientadora: Drª Christina Bielinski Ramalho)


O presente trabalho tem a intenção de fazer uma análise do romance A noite é dos pássaros, do escritor paraense Nicodemos Sena. Ao longo dos capítulos apresentaremos a biografia do autor, contando um pouco sobre sua vida e outros trabalhos publicados; a exposição de alguns depoimentos críticos, com a intenção de demonstrar o quanto o livro é bem conceituado; uma resenha crítica do romance, para que o leitor que tiver acesso a este material possa ter uma visão mais ampla sobre a história do romance; e o estudo de alguns pontos do contexto pós-moderno presentes no romance, com a finalidade de fazer uma análise crítica do romance no atual estilo em que a Literatura está inserida. Além disso, apresentamos um breve estudo sobre o relato de viagem Duas viagens ao Brasil, do alemão Hans Staden, pois faremos uma leitura comparada entre os dois, uma vez que Nicodemos Sena retira deste o material para compor o seu romance.

SUMÁRIO


INTRODUÇÃO
1 – Nicodemos Sena e sua fortuna crítica
2 – Hans Staden e Duas viagens ao Brasil
3 – Nicodemos Sena e A noite é dos pássaros
4 – Uma leitura comparada
4.1 – O elemento religioso
4.2 – O caráter de Alexandre Rodrigo Ferreira X Hans Staden
4.3 – O relato dos costumes tribais
4.4 – A diferença de gênero entre as obras
5 – A noite é dos pássaros e a Pós-Modernidade
5.1 – O ecletismo estilístico em A noite é dos pássaros
5.2 – A intertextualidade em A noite é dos pássaros
5.3 – O hibridismo em A noite é dos pássaros
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS

ANEXO (Entrevista como Autor)


INTRODUÇÃO

A literatura brasileira com o Romantismo evoluiu e criou a sua própria identidade, conseguindo assim, desvincular-se do modelo europeu que foi a sua base inicial. De lá pra cá, o mundo mudou. Hoje, tudo acontece muito rápido, passamos por várias experiências ao mesmo tempo e passamos a viver na era da informação. A literatura, portanto, teve de acompanhar essa evolução, o que gerou um novo estilo, ao qual chamamos Pós-modernismo. Estilo este contaminado pela velocidade com que o mundo evoluiu, com textos eloqüentes e personagens que são o retrato do homem atual, com temores, angústias, alegrias, certezas e contradições.
O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão crítica do romance A noite é dos pássaros, do escritor Nicodemos Sena, discutindo algumas das principais características do contexto pós-moderno presentes na obra e, em meio a isso, mostrar algumas informações sobre o autor e apontar as questões mais interessantes abordadas ao longo da narrativa. Para tal, é necessário contar um pouco sobre o relato de viagem do alemão Hans Staden, Duas viagens ao Brasil, uma vez que este escrito serve de material para a construção do romance de Nicodemos Sena.
Devido a essa aceleração da sociedade moderna, a narrativa brasileira há tempos se esqueceu um pouco da questão sobre a relação do índio com o homem branco colonizador da época do descobrimento. O que Nicodemos faz em seu romance é resgatar esse assunto pouco discutido, construindo uma narrativa de ficção instigante, galgada em fatos históricos que, aliados a um mundo de sonhos, fantasias e mistérios, relata a vida indígena, seus valores, crenças, mitos e costumes, além de demonstrar, através do personagem principal de sua trama, os defeitos, as qualidades e os medos de todo ser humano. Mesmo sendo uma obra de ficção, o que o autor faz, através de sua narrativa, é dar a possibilidade aos leitores de conhecer um pouco mais sobre a cultura indígena.
O romance aqui estudado possui uma riqueza de temas que podem ser discutidos. Fica claro para o leitor que para escrevê-lo o autor dedicou-se a um intenso processo de pesquisa, aderindo uma intertextualidade a seu texto, além de uma mistura de estilos e da presença do hibridismo, principais características do pós-modernismo. Assim, baseado nessas questões, demos início ao nosso estudo.

1 – Nicodemos Sena e sua fortuna crítica

Nicodemos Sena, autor do livro A noite é dos pássaros, nasceu no dia 8 de julho de 1958, em Santarém do Pará, Amazônia brasileira, onde viveu até 1976. Parte de sua infância viveu entre os descendentes dos índios maués, ao sul da ilha de Tupinambarana, na região de fronteira entre os estados do Amazonas e Pará, experiência que para sempre o marcaria. Formou-se em Jornalismo, pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), e em Direito, pela USP (Universidade de São Paulo).
Em 1999, estreou com o romance A espera do nunca mais – uma saga amazônica (Editora Cejup, Belém, PA, 876 páginas, já em 2ª edição).
Em 2000, A espera do nunca mais conquista o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos, da União Brasileira de Escritores (UBE/Rio de Janeiro).
O romance abordado neste trabalho, A noite é dos pássaros, do ano de 2003, foi publicado, primeiramente, como folhetim, no jornal O Estado do Tapajós (Pará, Brasil) e na revista eletrônica portuguesa TriploV e recebeu elogios da crítica literária.
Nicodemos Sena aparece no Dossier Amazónico publicado na revista literária portuguesa Construções Portuárias (nº01, 2002), no qual um trecho de A noite é dos pássaros foi incluído, ao lado de importantes escritores da Amazônia, como Max Martins, João de Jesus Paes Loureiro, Vicente Cecim, Age de Carvalho, Benedicto Monteiro e Benedito Nunes.
Fragmentos de A noite é dos pássaros foram publicados nas revistas Palavra em Mutação (nº02, 2003) e Storm-Magazine, ambas de Portugal. Em 2003, A noite é dos pássaro conquistou o prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, e, em 2004, Menção Honrosa no prêmio José Lins do Rego, da União Brasileira de Escritores (UBE/Rio de Janeiro).
Sobre a ficção de Nicodemos Sena já se manifestaram importantes críticos e escritores brasileiros, entre os quais Antonio Olinto, Nelly Novaes Coelho, Olga Savary, Fábio Lucas, Oscar D’Ambrosio, Antonio Carlos Secchin, Dirce Lorimier Fernandes, Ronaldo Cagiano, Acyr Castro, Manoel Hygino dos Santos, Nelson Hoffmann, Carlos Nejar, Tanussi Cardoso, Enéas Athanázio e Adelto Gonçalves.
Nicodemos Sena vem sendo considerado a grande revelação da literatura amazônica nos últimos anos, tornando-se verbete na Enciclopédia de Literatura Brasileira, direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa (edição conjunta da Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional, DNL, Academia Brasileira de Letras, 2ª edição, 2001).
Dirce Lorimier Fernandes (1) diz que A noite é dos pássaros é uma obra capaz de transitar entre os vários mundos a que pertence o homem. Para ela, o autor, de forma eloqüente, traz para o presente o diálogo entre a História e a Literatura dos séculos do desbravamento do Brasil. Diz, ainda, que o romance recria e desfaz mitos existentes a respeito da relação entre o europeu e o elemento nativo, fazendo da narrativa uma boa maneira de atualização de conceitos, ou, pelo menos, reorganiza o objeto de observação a partir de um outro ponto de vista, que tem a responsabilidade de preservar um panorama distinto, que agora se constitui em romance.
Caio Porfírio Carneiro (2) declara que Nicodemos no seu romance revolve, de maneira surpreendente, a vida nativa da foz do rio Amazonas, tendo como tubo de ensaio os costumes indígenas, sobretudo o canibalismo, que ameaça, em suspense, ao longo de toda a estória, a personagem central do romance. Para ele, a obra é uma explosão de novidades literárias, onde o sonho e a realidade se fundem e se completam. Ele acrescenta, ainda, que a obra é valiosíssima, pois a arte criadora alcança picos de beleza admiráveis pela magia do “como dizer” do autor. O crítico completa dizendo que A noite é dos pássaros é muito mais que um romance calcado em documentos, é uma roldana mágica, envolvente, com vigor criativo notável na tessitura da vida dos nativos e suas heranças culturais, da floresta, seus animais e pássaros, onde o jovem português e sua amada envolvem-se e também envolve o leitor nesse mundo estranho e fascinante, real, emblemático e metafórico.
Para Adelto Gonçalves (3), Nicodemos Sena, em A noite é dos pássaros, deixa exposto o seu trabalho de artesania. Leva, assim, o leitor a perceber que retirou do livro Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden, boa parte dos elementos que empregou no romance, buscando no relato de um acontecimento que se supõe real o material que empregaria em sua ficção. Adelto declara que o autor muniu-se, portanto, da realidade para mentir melhor, como fazem os grandes mestres da ficção. Segundo ele, Sena constrói ainda um instigante ensaio dos costumes dos indígenas brasileiros, sobretudo o canibalismo, fazendo com que a Amazônia volte de novo ao cenário literário com um romancista seguro, que sabe como manter o suspense até o último parágrafo, levando o leitor a viver a situação aflitiva de seu personagem, ao mesmo tempo em que o faz conhecer o conflito étnico-cultural que se dá entre o europeu civilizado e o homem ainda no estado da natureza. Adelto finaliza dizendo que Sena domina a arte da narrativa, seduzindo o leitor com um estilo impecável, que faz da palavra um espetáculo, tal como a Amazônia com sua exuberante floresta.
Como se pode perceber, a crítica destacada realça, em Nicodemos Sena, a capacidade inventiva, o compromisso com a cultura amazônica e a habilidade para envolver os leitores no suspense da narrativa. Resta, por meio de análise da obra, verificar e comentar tais características.

2 – Hans Staden e Duas Viagens ao Brasil

Duas viagens ao Brasil, do alemão Hans Staden, é um relato real das duas viagens que o alemão fez ao Brasil em oito anos e meio, o qual foi publicado em Marburgo, Hessen, Alemanha, no ano de 1557. Já a primeira publicação em língua portuguesa ocorreu no ano de 1892. O livro, repleto de riquíssimas figuras que colaboram para um melhor entendimento da narrativa, possui um caráter histórico e divide-se em Livro I e Livro II: o primeiro possui cinqüenta e três capítulos, os quais relatam os fatos ocorridos durante as duas viagens que o alemão fez ao Brasil; o segundo contém trinta e sete capítulos descrevendo como ocorriam as navegações, a flora e a fauna do país e os costumes e tradições do povo indígena.
No primeiro livro, Hans Staden conta que saiu de Hessen, como artilheiro, com destino a Portugal com a intenção de visitar a Índia. Na primeira viagem, em 1547, ele foi parar em Pernambuco, onde teve o primeiro contato com os índios, ou selvagens, como ele os chama em seu livro. Essa primeira viagem durou dezesseis meses. Quando retornou a Lisboa decidiu empreender sua segunda viagem na companhia de espanhóis.
Na segunda viagem partiu de Sevilha, na Espanha, no ano de 1549. Seu navio acabou naufragando, mas sua tripulação foi salva e recebida pelos portugueses e levada a São Vicente. Por entender de artilharia, Hans foi convidado pelos portugueses para ser artilheiro em Bertioga. Porém, um dia, ao sair para caçar, foi capturado por índios da tribo Tupinambá devido a acreditarem que ele era português. Na captura, os índios o cercaram aos gritos e o despiram, deram-lhe pancadas, bofetadas e feriram-lhe com uma lança para vingar nele a morte de seus amigos e antepassados.
Hans foi levado à aldeia que se chamava Ubatuba pelos dois índios que o capturaram, Ieppipo Wasu e Alkindar Miri, para ser dado de presente a um selvagem chamado Ipperu Wasu. Ao chegar lá, foi humilhado pelos índios e obrigado a dançar com eles. Hans ainda tentou convencê-los de que não era português dizendo ser francês (os franceses eram amigos dos índios), mas estes não acreditaram, principalmente quando um francês, que era chamado de Karwattuware pelos selvagens, foi até a tribo e confirmou que Hans era português.
Durante o período em que permaneceu preso, a única coisa que o mantinha vivo era a sua fé, que, aliás, o ajudou muito. Em todos os momentos em que se sentia aflito ou em perigo ele orava e algo de surpreendente acontecia e deixava os índios impressionados. Vários fatos ocorridos provaram que Deus estava protegendo o alemão, fazendo com que os índios acreditassem que o Deus de Hans era muito poderoso e passassem a temê-lo.
A libertação de Hans deu-se quando os índios da tribo Tupinambá o ofereceram como presente para um outro selvagem chamado Abbati Bossange recomendando que não o fizesse mal, pois o Deus dele era terrível. O prisioneiro acrescentou para seu novo dono que logo o navio de seus irmãos chegaria com muitas mercadorias e, se ele fosse bem tratado, todos seriam presenteados. Quatorze dias depois, um navio francês chegou buscando por ele. Os franceses deram presentes aos índios em troca da libertação do alemão, chegando, assim, ao fim os seus dias de prisioneiro.
O segundo livro, é usado pelo alemão para contar de maneira detalhada como se faziam as navegações de Portugal para o Brasil, como eram a fauna e a flora do nosso país, as habilidades dos indígenas na caça e na fabricação de utensílios de uso próprio, suas crenças, como se preparavam para a guerra e tratavam seus inimigos, além de mostrar como praticavam a antropofagia. Todos esses pontos são descritos detalhadamente em capítulos pelo alemão.
Quando se parte de Lissebona para a província do Rio de Jennero, situada no país Prasil, que se chama também América, vai-se primeiro a umas ilhas chamadas Cannarix, que pertencem ao rei da Espanha. (...) Daí vai-se às ilhas que se chamam Los insules de Cape virde. (...) Das ilhas navega-se sul-sudoeste para o país Prasil em um grande e vasto mar (...).
Há no país veados e porcos do mato de duas qualidades. Uma espécie é como a daqui. As outras são pequenas como porcos novos, e se chama (Queixada) Taygassu, Dattu; (...) Há também macacos de três espécies.
Há ali árvores a que os selvagens chamam Junipappceywa (Genipapo). Estas árvores dão uma fruta semelhante à maçã.
Quando trazem para casa os seus inimigos, as mulheres e as crianças os esbofeteiam. (...) Fornecem aos prisioneiros boa comida. (...) Terminado todos os preparativos marcam o dia do sacrifício. (...) Então desfecha-lhe o matador um golpe na nuca, os miolos soltam e logo as mulheres tomam o corpo (...). Comem os intestinos e também a carne da cabeça; os miolos, e a língua e o que mais houver são para as crianças. (4)

Quando retornou a sua terra, Hans Staden resolveu escrever tudo o que ocorreu com ele durante os nove meses permanecidos em poder dos índios e como milagrosamente foi salvo, segundo ele, por intervenção de Deus. O alemão deixa claro em seu livro que a sua intenção ao escrever foi, exclusivamente, valorizar a ação da misericórdia divina, responsável por socorrê-lo em todos os momentos em que passou por perigos. Para confirmar isso reproduziu no livro as orações feitas a Deus enquanto esteve em cativeiro.

Não posso crer que alguém possa orar de coração
Sem que esteja em grande perigo ou perseguição,
Porque enquanto o corpo vive conforme quer,
Está sempre contra o seu criador
Por isso, Deus, quando manda alguma desgraça,
É prova que Ele nos quer ainda bem,
E ninguém deve ter dúvida disso,
Porque isso é uma dádiva de Deus.
Nenhuma consolação, nem arma, existe melhor
Que a simples fé em Deus.
Por isso, cada homem de devoção
Nada melhor pode ensinar a seus filhos
Do que a compreensão da palavra de Deus,
Na qual sempre podem ter confiança. (5)

Hans preocupou-se em escrever um relato minucioso em detalhes, pedindo inclusive ao Dr. Joh Dryandri, conhecido como Joham Eichmann (importante anatomista germânico da época) que fizesse um prefácio de seu livro falando sobre a veracidade de sua narrativa, pois na Europa do século XVI, devido a grande quantidade de navegações, era comum aparecerem histórias de viagens mentirosas e absurdas, por isso o alemão preocupou-se em ser verdadeiro ao extremo, dedicando seu livro ao Príncipe de Hessen, H. Philipsen, e enfatizando que decidiu publicar o livro para agradecer a misericórdia de Deus, responsável por sua salvação.

3 – Nicodemos Sena e A noite é dos pássaros

O romance A noite é dos pássaros, conta a história de Alexandre Rodrigo Ferreira – naturalista português capturado pela tribo indígena dos Tupinambás no ano de 1750 – que acaba se envolvendo com uma indiazinha de nome Potira. A personagem escolhida pelo autor é uma homenagem a Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista baiano nascido no ano de 1756, mas é considerado português por ter partido para Portugal aos 14 anos. Formou-se naturalista pela Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra e só retornou ao Brasil em 1783, o que resultou em um livro chamado Viagem filosófica, no qual descreve as riquezas naturais do nosso país.
No romance, Alexandre é aprisionado por índios Tupinambás na foz do rio Amazonas. No cativeiro ele encontra um livro que foi parar na aldeia após um naufrágio. Trata-se de Duas viagens ao Brasil, do alemão Hans Staden, que, como já dito, também fora prisioneiro de índios da mesma tribo. O autor, então, utiliza-se dos fatos reais do livro de Hans para fazer o roteiro de seu romance, colocando neles a sua visão particular. Entre os fatos aproveitados do relato de viagem do alemão estão: a captura do naturalista pelos índios da tribo dos Tupinambás, considerados inimigos do povo português, ocorrida devido a Alexandre confiar sua segurança, bem como Hans Staden, a um índio carijó chamado Paiguara; a frase dita pelo prisioneiro ao chegar à tribo, “estou chegando eu, vossa comida”; as humilhações sofridas nas mãos dos índios; além de o índio escolhido para ser guardião do naturalista também chamar-se Alkindar-miri.

Tudo porque, assim como Hans confiara no índio carijó, também eu, em minhas andanças pelos arredores de Belém, onde viera pesquisar a flora e a fauna, entregara-me à proteção do safado de um índio chamado Paiguara, pertencente ao senhor que me hospedava, deixando-me levar por ele direitinho ao encontro dos tupinambás.
Ao acostarem as canoas, sou forçado a gritar, em tupi, diante da chusma de moços e velhos que sai das cabanas para ver-me: “Aju ne xé peê remiurama” (estou chegando eu, vossa comida).
Então fazem uma roda em volta de mim e adornam-me a cabeça com um leque quadrangular de penas da cauda de papagaios, que eles chamam “araçoiá”. Amarram também alguns chocalhos numa das minhas pernas – justamente na perna ferida! – e começam a cantar, obrigando-me a acompanhar o compasso batendo o pé com a perna que tem os chocalhos. A dor é tanta que mal posso suster-me de pé.
Quase sem enxergar meus pés, deixo-me levar por Alkindar-miri, cuja figura larga, atarracada e carnuda, peito ancho e arcado, nuca reforçada e pequena, braços curtos, grossos e musculosos, inspirou-lhe o nome e impede-me qualquer pensamento de fuga. (6)

Alexandre Rodrigo Ferreira, após ser capturado, é levado até a tribo dos Tupinambás e no caminho sofre várias humilhações: os índios lhe batem, amarram, tiram suas roupas e juram devorá-lo. Exatamente os mesmos fatos ocorridos com o alemão, como já dito. Quando chega à tribo, mesmo sentindo fortes dores, o naturalista nota a presença de uma jovem índia, muito mais formosa que as demais, trata-se de Potira, filha de Guaratinga-açu, o grande chefe da tribo que a entrega como esposa a Alexandre com a função de o fazer engordar para o banquete que está sendo preparado e do qual ele será o prato principal.
Potira passa a protegê-lo, principalmente de seu irmão Nhaêpepô-açu, o qual diz que vai devorar o português. Potira acredita que Alexandre é Sumé, o mito indígena do branco bom. Sumé era um grande velho, branco como a luz do dia e com uma longa barba, capaz de caminhar sobre as águas do mar como sobre terra firme. Enviado de Tupã, senhor do Céu e da Terra, apareceu antes do descobrimento ensinando aos nativos a cultivar a terra e a se comportar moralmente. Diz a lenda que a paz reinava na tribo indígena até aparecer Jurupari – doméstico de Tupã que foi expulso por fazer maldades – enganou os índios dizendo que Sumé era mau e ensinava mentiras. Rejeitado e perseguido, o santo abandonou a tribo e caminhou sobre as águas do mar até atingir a Índia. As flechas disparadas em sua direção voltavam contra aqueles que as atiravam. A indiazinha e o naturalista envolvem-se cada vez mais e a relação entre eles é cercada de magia, sonhos e mistérios, além do ciúme que Alexandre sente de Itajibá, irmão de criação de Potira. O envolvimento torna-se tão grande que eles passam a viver uma relação amorosa intensa, como a de qualquer casal apaixonado. Totalmente seduzido pelo amor de Potira, Alexandre não consegue, nem mesmo, deixar de atender ao pedido de sua amada para que comesse a carne do índio Paiguara, o qual havia sido morto e assado e estava servindo de banquete para a tribo como vingança pela morte de seus antepassados.

“Aipotar nde caru!” (quero que comas!), disse-me Potira, estendendo-me o fêmur de Paiguara. Quase digo não, mas, vendo os olhos tristes da cunhantã, hesitei. “Na nde maenduari xoe xe resene” (tu esquecerás de mim), ela completou. Em vez de dizer “Alexandre Potira resé i maenduarine” (Alexandre vai lembrar-se de Potira), peguei o fêmur da mão da rapariga e levei-o à boca, sentindo imediatamente o gosto adocicado – diga-se de passagem, até bem tolerável – de carne humana!(7)

Mesmo vivendo esse intenso amor, Alexandre sabe que o dia de sua morte está breve e busca, inconscientemente, nos momentos de maior tensão, refúgio nos sonhos. Lá ele consegue fugir de seu fatídico final quando Potira o transforma em um sabiá e ele passa a conviver com os pássaros e a compreender a língua deles. Num dos sonhos descobre ser filho de um gavião, o caburé-açu, com uma mulher, por isso Potira conseguiu transformá-lo em pássaro para que ele pudesse fugir. Esses devaneios o fazem repensar sua fé, tentar buscar um sentido para a vida e pensar como deve agir se tiver uma segunda chance para viver.
Ainda no sonho, o gavião, que esteve a todo o momento questionando-o sobre a sua crença, o traz de volta à realidade no exato momento em que está sendo realizado o ritual de sua morte. Porém, por já estar escutando o rufar dos tambores anunciando a hora de sua morte, ele reluta em voltar, mas o pássaro ordena que ele abra os olhos, saia do sonho e volte à realidade para encarar seu destino que era o de ser devorado pelos indígenas.

“Queres que te conte o significado dessa visão?”.
“Sim, quero”.
“Ela prenuncia o teu sacrifício”, explica o caburé-açu, “mas não te angustias, o que tiver de ser será; se as coisas optarem pelo Jejum, sobreviverás; se optarem pela Fome, serás devorado. Queres saber o que acho? É melhor ser devorado, pois, como diz aquele anjo: há um dom que nos é dado pelo Um para alimentar a permanência; aliado dos jejuns, esse dom é o da Amizade das coisas pelas coisas”. O gavião faz uma pequena pausa, depois diz: “Pronto, agora podes abrir os olhos!”. Hesito, pressentindo o que me espera. “Abre! O que tiver de ser será!”, insiste.(8)

Sua amada Potira o salva na última hora, no mesmo momento em que os portugueses chegam para resgatá-lo, quando levaria o golpe final.
Pode-se perceber que Alexandre vivencia cenas oníricas, e em muitas delas sonho e realidade tornam-se um único elemento. Como o personagem caminha livremente pelos dois planos, o do real e o do sonho, algumas vezes o leitor não percebe se o que a personagem está vivenciando é sonho ou realidade.
Durante todo o romance, o personagem Alexandre passa por momentos de conflitos, entre eles: às vezes em que se surpreende rogando por sua vida a Deus, embora se julgasse ateu; os ciúmes que sente de Itajibá, irmão de criação de Potira e por quem ela guarda uma grande afeição; a incerteza em saber se Potira também o devoraria no momento em que fosse morto e assado pelos Tupinambás; o medo de ganhar peso e com isso adiantar o dia de sua morte; o receio em decidir se deveria comer carne humana para atender a um pedido de Potira, a fim de não deixá-la triste; e o medo de sair do sonho e voltar para a realidade que o aguardava.

Dou por mim entoando o seguinte canto religioso, que não suspeitava trazer na memória, descobrindo que, embora me julgue ateu, sou mais cristão do que imagino:
"Agora pedimos ao Espírito Santo
Pela fé verdadeira, com todas as veras,
Que nos preserve em nossa morte
Quando deixarmos esta mísera vida”
(...)Potira fala do amigo com tanta veemência que chego a pensar que não são apenas fraternos os seus sentimentos. Tal pensamento desagrada-me. O que me importam os sentimentos de uma cunha
(...)“Aipotar nde caru!” (quero que comas!), disse-me Potira, estendendo-me o fêmur de Paiguara. Quase digo não, mas, vendo os olhos tristes da cunhantã, hesitei. “Na nde maenduari xoe xe resene” (tu esquecerás de mim), ela completou. Em vez de dizer “Alexandre Potira resé i maenduarine” (Alexandre vai lembrar-se de Potira), peguei o fêmur da mão da rapariga e levei-o à boca, sentindo imediatamente o gosto adocicado – diga-se de passagem, até bem tolerável – de carne humana!
(...)“Pronto, agora podes abrir os olhos!”. Hesito, pressentindo o que me espera. “Abre! O que tiver de ser será!”, insiste.
“Abre!”, torna a insistir, já rispidamente, o gavião. (9)

Devido ao envolvimento amoroso com Potira, Alexandre acaba participando de certos rituais e costumes indígenas, o que faz com que passe por um processo de “branqueamento” às avessas. Talvez por dizer-se ateu e, portanto ser um homem livre de dogmas religiosos, consiga com uma certa facilidade, contaminar-se pela cultura indígena. Essa aculturação é fator determinante para o naturalista respeitar e se ajustar ao modo de vida daquela aldeia e consiga, de certo modo, uma relação pacífica com os índios durante o período em permaneceu aprisionado.
Outro fator relevante de contribuição para a aculturação foi o fato de Alexandre já dominar a língua tupi, facilitando o diálogo entre ele e os índios e, principalmente, com sua amada. Algumas passagens do romance, como a relação sexual que acontece entre o português e a índia durante um festim realizado em outra aldeia e do qual eles foram convidados, ilustram o quanto Alexandre parecia estar à vontade no meio dos índios, ou seja, aculturado. Dominado pelo clima de festa, ele e Potira se amam ao ar livre, na presença de outros índios.

Esqueci do que me estava destinado e fui, por um instante, um homem completamente feliz. Sem me importar com nada, nem com Alkindar-miri, nem com a areia que em nós se grudava, entranhei-me de novo em Potira, ali mesmo, ao lado dos outros corpos. Quando terminamos, Potira ergueu-se e fez-me também levantar.(10)

A aculturação pelo qual o naturalista passa pode ser analisada como uma valorização à cultura indígena, pois em outros romances da nossa Literatura Brasileira, como em Iracema, O Guarani, entre outros, é o índio quem passa pelo processo de branqueamento, sempre na tentativa de se valorizar a cultura do branco. Já no romance de Nicodemos Sena, o índio e sua cultura são os elementos de valorização. A narrativa sobre a vida indígena apresentada ao longo do romance é feita sem mostrar vestígios de censura ou depreciação dos atos cometidos pelos índios, em momento algum é questionado se o que eles fazem é certo ou errado.
Embora a narrativa ocorra no ano de 1750, o autor utiliza uma linguagem bem atual, com algumas expressões populares, porém se nota um rigor e um imenso cuidado estético na escrita do texto. Fica nítido que Nicodemos é um autor que se preocupa com a forma e o estilo, por isso cuida minuciosamente de cada frase escrita. Toda essa dedicação é vista através dos diálogos escritos em tupi, demonstrando o intenso processo de pesquisa que o autor entregou a sua obra. Não bastasse toda a riqueza de vocabulário, o romance ainda é repleto de belas ilustrações que contribuem para o envolvimento do leitor com a narrativa. A fantasia e o real misturam-se para compor um romance instigante, intenso, com diálogos eloqüentes que prendem a atenção do leitor do primeiro ao último capítulo.

Que o amigo me compreenda e perdoe. Assim como em garoto, pastoreando ovelhas nos campos do Alentejo, aliviava-me do fardo das responsabilidades troçando de coisas, animais e pessoas, no que divertia a todos, assim também hoje, na situação calamitosa em que me encontro, mofo da minha covardia para diminuir um pouco a vergonha de saber-me um ateu (que já foi coroinha e perdeu a fé no dia em que só por um triz não foi enrabado atrás da sacristia) de repente convertido em cristão, só porque está com medo da morte, ou, como se diz no Grão-Pará, está com o "fiofó na seringa”?(11)

De acordo com o que foi mostrado ao longo desse capítulo, é possível notar que o autor aborda, nesse livro, o choque entre culturas, misturando veracidade e ficcionalidade, criando um diálogo entre fatos ocorridos historicamente e a Literatura, numa valorização da cultura, dos mitos indígenas e da língua tupi. Sena demonstra, além de um compromisso com a estética da obra, um profundo resgate aos costumes indígenas, seus mitos e principalmente o hábito do canibalismo, que é o ponto principal de tensão do romance.

4 – Uma leitura comparada

Como já dito anteriormente, a presença do elemento religioso e o relato de costumes tribais estão presentes em ambas as obras aqui mencionadas. Porém, a caracterização desses fatos é abordada de maneiras diferentes em cada um deles. Outro fator de relevância a ser apontado é a diferença de caráter existente entre as personagens principais, Hans Staden e Alexandre Rodrigo Ferreira. Além disso, é necessário destacar a diferença de gêneros entre os livros. Enquanto Duas viagens ao Brasil possui as marcas do ensaístico, A noite é dos pássaros possui as do ficcional. Esses são os pontos que iremos abordar neste capítulo.

4.1 – O elemento religioso

O elemento religioso é um tema fortemente abordado, tanto por Hans Staden quanto por Nicodemos Sena, contudo com visões diferentes, como já dito. Em Duas Viagens ao Brasil, a religião é o ponto de maior importância da obra. Hans Staden deixa claro que a intenção dele, ao escrever o livro, foi a de divulgar a misericórdia divina àqueles que são tementes a Deus. O alemão quis provar ao leitor que, se não fosse por intermédio de Deus, ele não teria sido salvo do fatídico destino que o esperava: o de ser devorado pelos Tupinambás. A religião do homem branco é vista como algo de caráter valorativo, pois a todo tempo são demonstradas passagens em que o poder de Deus é expressado por meio de fenômenos ocorridos com a intenção de causar temor aos índios. O poder divino é mostrado como uma força capaz de sobrepujar os deuses indígenas, ou seja, o Deus do homem branco é relatado como muito mais forte e poderoso do que os deuses adorados pelos índios.

“Sabeis que ele esteve entre vós alguns anos e nunca esteve doente; agora, porém, quando deu de mentir a meu respeito, meu Deus se irritou e o fez adoecer e meteu em vossas cabeças que o matásseis e o devorásseis. Assim é que meu Deus há de fazer com quantos malvados me têm feito mal, ou me fazem”. Atemorizaram-se com estas palavras, e isso agradeço a Deus todo poderoso que, em tudo, se mostrou tão forte e misericordioso para comigo.(12)

Já em A noite é dos pássaros, a abordagem religiosa aparece menos importante por parte da personagem do português. Enquanto o alemão era um homem extremamente religioso e temente a Deus, Alexandre Rodrigo Ferreira é um ateu que, apenas nos momentos de terror, recorre à misericórdia divina.
No romance de Nicodemos Sena, Deus é visto como um refúgio para quando o homem encontra-se em desespero. Mesmo sendo ateu, Alexandre conhece muitas orações e cânticos religiosos, devido a ter sido coroinha quando criança, contudo o personagem explica que perdeu a fé no dia em que “só por um triz não foi enrabado atrás da sacristia” (SENA, 2003: 50).
Diferentemente de Hans, Alexandre não aponta a interferência divina como a responsável por salvá-lo das mãos dos Tupinambás, muito ao contrário. Até no momento em que roga por salvação e Deus lhe dá um sinal de sua existência, não acredita que tenha sido ao seu favor e, inclusive, blasfema contra Deus.

Grande melancolia se apossa de mim, ao lembrar-me de que, a cada remada dos homens, mais se aproximava o meu fim. Por que há de ser assim? “Deus, quero crer em ti! Permite-me a epifania! Cega-me como cegaste Saulo na estrada de Damasco, para que eu veja de noite o que não enxergo nem mesmo de dia! Deus, por que tenho de morrer agora que encontrei Potira?”. Mal acabo de clamar, um vento forte encapela as águas da grande baía que estamos a atravessar, emborcando várias canoas. Irados, os índios gritam: “Aipó mair angaipaba ibitú guasu omou”, isto é: o homem mau, o santo, foi quem mandou o vento, pois durante o dia olhou ele nas “peles do trovão”, aludindo ao meu livro. Eu, que já não cria em Deus, depois dessa, fiquei mais ímpio. “Se Ele não quer me salvar, pelo menos não me estrague o pouco tempo de vida que ainda tenho!”, blasfemo.(13)


4.2 – O caráter de Alexandre Rodrigo Ferreira X Hans Staden

Os personagens principais de cada obra possuem caráter bem diferente. Como mencionado no item 4.1, Hans Staden era um homem extremamente temente a Deus, todas as suas ações tinham motivações religiosas. Ele seria capaz de se conformar em ser devorado caso fosse essa a vontade de Deus. Homem sério, certo de suas convicções, não cedeu aos costumes e à crença indígena e também não se envolveu amorosamente com nenhuma índia.
Já Alexandre Rodrigo Ferreira é ateu, age de acordo com o que considera como certo, não tem em seu caráter aspectos morais voltados para a religião. No começo, quando é capturado, sente-se envergonhado por ficar nu diante das mulheres da tribo, mas a vergonha passa com o tempo, principalmente quando conhece Potira, não vendo problema algum em ter um relacionamento com ela e nem de participar de um ritual antropofágico. Além disso, mesmo como refém, Alexandre participa das festas, bebe cauim com os índios e mantém relações sexuais com Potira sem se importar com a presença de outras pessoas.
O personagem de Nicodemos mostra-se uma pessoa mais humana, com defeitos e qualidades, capaz de adaptar-se mais facilmente ao meio em que está preso para tentar aliviar um pouco da tensão por estar em cativeiro, mas sem esquecer-se do seu desejo de ser libertado. Não é um homem “certinho” como o alemão.

4.3 – O relato dos costumes tribais

Os costumes tribais são muito bem relatados pelos dois autores. Nos dois livros a hospitalidade dos índios para com seus prisioneiros, a fauna, a flora e os rituais são expostos detalhadamente. Porém, por pertencer ao gênero ensaístico – como será explicitado mais adiante – Duas viagens ao Brasil mostra uma visão mais descritiva dos fatos, com um caráter fotográfico, se assim podemos dizer. A intenção do narrador – personagem é muito mais informar do que causar emoções, é como se estivesse fazendo um estudo científico. O autor dedica um livro inteiro às descrições dos costumes tribais; à fauna, à flora, às crenças, onde dormem os índios, ao que comem e bebem, como dançam, navegam, guerreiam, etc. Esses relatos de rituais do povo Tupinambá são divididos em capítulos. Toda essa riqueza de detalhes faz com que o livro tenha um caráter histórico de grande valor.
Em A noite é dos pássaros, a descrição já é feita através da narrativa, ou seja, o autor aproveita-se dos recursos ficcionais para apresentar as mesmas descrições existentes no livro do alemão Hans Staden. A maneira como foi capturado, os mitos, os rituais, a fauna e a flora são expostos ao longo da narrativa através dos acontecimentos. No capítulo “Com o fiofó na seringa” o narrador descreve um ritual de cura indígena quando, Potira, aproveitando um momento de conversa com Alexandre, diz que vai curar as feridas dele.

“Tupã eicatu opacatu mbae monhanga” (Deus mostra-se bom fazendo todas as coisas). “Aerobiar Tupã” (confio em Deus). “Tupã cura”, completa Potira, pondo-se a encher os pulmões o mais que pode e, inflando as bochechas, sopra sobre a minha ferida. Apesar do esforço, faz isso com tanta leveza que eu nem sinto dor e até me distraio apreciando os tons violáceos que afloram na pele da rapariga (...).
Potira continua soprando, pois, segundo crêem os selvagens, o sopro, isto é, o ar insuflado nos seres, tonifica os organismos e dá-lhes vida. Tupã também, como Javé, fizera o primeiro homem do barro: pegou uma mão cheia de terra, amassou-a bem, modelou com ela uma figura de gente, soprou-lhe em seguida o nariz e deixou cair no chão, começando o boneco a engatinhar. Depois de soprar a região lesada, a minha pequena “piaga” (pajé), com a mesma delicadeza, passa a sugá-la, encovando as bochechas e puxando o pus para si, gargarejando e lançando fora em seguida, num só jato, entre a gosma e a pustema, com a mímica do vômito, o espírito maligno, o quid misterioso que penetrou em mim. O pronto alívio que sinto, confesso, muito me impressiona, abalando-me a descrença que até então trazia na terapêutica tupi.(14)

Quanto à fauna, por exemplo, os capítulos com episódios oníricos são os grandes responsáveis pela descrição de várias espécies de aves, as quais são quase como que catalogadas pelo narrador, como ocorre no capítulo “Cordão alado desce da Lua”, por exemplo.

De sete em sete, os pássaros vão chegando, uma espécie atrás da outra (...).As araras vêm na frente. Belas e barulhentas, pousam nas cumeeiras das malocas e vão logo roendo a madeira e a palha com seu bico branco, grande e muito duro. Tucanos de bicos de osso, pernas curtas e pretas, penas das costas azuladas, asas e rabo anilados, frouxéis miúdos e amarelos no peito (...).Macucagoás de pernas compridas, cheias de escamas, com feição de galinha, pousam ao longo do chão (...).Os formosos pássaros de água doce chegam. Primeiro as uratingas, as garças brancas, de pernas longas, macérrimas, bico mui comprido, pés amarelos e um molho de plumas entre os encontros das asas, que lhes chegam à ponta do rabo. E mais pássaros vão chegando: suiriris, urandis, pexaroréns, querejuás, pardais, muepererus, nhapupés, saracuras, orus, anus, maguaris, aracuãa, atiaçus, timunas, uanandis, uapicus, toatós, uraoaçus, caracará, acauãs, bem-te-vis. (15)

Como já mencionado acima, ocorre uma diferença de gêneros entre as duas obras. A noite é dos pássaros contém as marcas do ficcional e Duas Viagens ao Brasil as do ensaístico. Resta-nos demonstrar a diferença existente entre elas.

4.4 – A diferença de gêneros entre as obras

Sabendo-se que a ficção é um ato ou efeito de fingir, simular, inventar e, portanto, uma criação imaginária, poder-se-á, num primeiro instante, ver o romance A noite é dos pássaros como não pertencente ao gênero ficcional, pois em seu conteúdo há referências a fatos e personagens reais. Contudo, esses dados são usados como pano de fundo do romance de Nicodemos Sena. O autor apenas utilizou-se deles com a intenção de montar a sua narrativa. A capacidade que o autor possui em juntar a imaginação criadora e os fatos reais utilizados é tão grande que seria impossível não ver o livro aqui estudado como uma narrativa de ficção.
A narrativa é feita em primeira pessoa através do personagem Alexandre Rodrigo Ferreira, o qual protagoniza a história juntamente com a índia Potira, tendo como principais personagens secundários os índios Alkindar-miri, responsavél pela guarda do prisioneiro; Guaratinga-açu, o pai de Potira, o vilão Nhaêpepô-oaçu, irmão de Potira que deseja devorar o português o mais rápido possível, Itajibá, irmão de criação de Potira e por quem ela guarda grande afeto, causando, inclusive, ciúmes a Alexandre; além do Sabiá, personagem vivido por Alexandre em seus sonhos; e o caburé-açu, uma grande águia, que revela ser seu pai.
O enredo conta como era a vida amazônica em meados do século XVIII e, inserido nesse contexto, o personagem Alexandre conviverá com os índios e passará por conflitos e tensões. Já no início do romance o autor expõe – com um tom de ironia, característica que irá desenvolver ao longo de todo o seu texto – o drama que o personagem irá vivenciar.

Não fosse a sombria expectativa da minha morte próxima, eu, Alexandre Rodrigo Ferreira, naturalista português, no verdor de meus vinte e cinco anos, poder-me-ia julgar um homem feliz, porquanto, já em 1751, quando o caso se deu, não havia cristão no velho mundo que não tivesse ouvido falar do modo hospitaleiro como os tupinambás no Brasil tratavam os seus prisioneiros, dando-lhes do bom e do melhor, e de um tudo, para depois devorá-los a “cauim pepica”, isto é, assados e regados com bebida. Nem na casa paterna, onde dormi anos no mesmo quarto com onze irmãos, nem depois, naturalista formado na Academia de Lisboa, em minhas andanças pelo mundo, sentira-me melhor instalado. (16)

O clímax maior do romance ocorre no último capítulo “Já escuto o rufar dos tambores” quando Alexandre nas asas do caburé-açu diz ter medo de abrir os olhos e ver a realidade que o espera. Nesse momento, o autor envolve o leitor no clima de grande tensão e expectativa pelo qual o personagem está passando, fazendo com que sinta a mesma ansiedade e o mesmo medo do personagem. Essa grande tensão com que o autor “prende” o leitor até os últimos momentos, pois o desenlace só ocorre na última página do romance, mostra a grande habilidade que Nicodemos Sena demonstra ter com o fio narrativo, mantendo a ansiedade do leitor até o final da trama.
O fluxo narrativo é dominado pelo tempo psicológico. O narrador-personagem desenvolve toda a narrativa de acordo com as vivências subjetivas pelas quais passa, ou seja, o tempo narrativo é empregado ao longo das experiências vividas por Alexandre como, o relacionamento amoroso com Potira, o cativeiro e os sonhos, responsáveis por determinar as ações que o personagem irá protagonizar ao longo do romance. Como essas ações serão vivenciadas em um tempo psicológico, consequentemente, o espaço psicológico terá presença marcada. Contudo, o personagem também vive suas experiências em um espaço físico.
É no espaço psicológico, presente principalmente nos sonhos, que Alexandre tenta fugir da realidade vivenciada naquele momento, reflete sobre a questão da vida e da morte, vive intensamente seu amor com Potira, transforma-se em um pássaro, tenta encontrar uma razão para a vida e reflete sobre seus medos e conflitos internos. Será o lugar usado pelo português para a reflexão.
Já o espaço físico, a aldeia indígena, será o cenário no qual o personagem irá relacionar-se com os índios, sua cultura e crenças, mas também com as constantes ameaças de ser devorado por eles, o maior perigo pelo qual passou na vida. Será o lugar onde ele viverá a realidade exata daquele momento, o medo maior, o de ser morto e devorado. É nesse ambiente de fatores mentais e materiais que Nicodemos Sena desenvolve a narrativa do naturalista brasileiro, considerado português, que decide voltar ao Brasil e acaba capturado justamente por índios que consideram o povo português como inimigo.
Duas viagens ao Brasil poderia ser considerada como uma obra de ficção devido a apresentar algumas características desse gênero. Possui um narrador-personagem, personagens secundários, conflitos e intrigas. Entretanto, tudo o que é contado, desde os personagens até a história em si, são fatos reais, e não uma imitação da realidade, fazendo com que o livro não possa pertencer ao gênero ficcional. Além disso, a narração é direta, o alemão descreve de maneira quase que fotográfica tudo o que ocorre com ele. O intuito demonstrado é o de contar claramente, sem rodeios, num diálogo direto com o leitor, toda a angústia enfrentada enquanto esteve como prisioneiro dos índios. Essas características comprovam que o livro pertence ao gênero ensaístico, pois como definido por Afrânio Coutinho (COUTINHO, 2006: 117) no gênero ensaístico há uma explanação direta dos pontos de vista do autor, dirigindo-se em seu próprio nome ao leitor ou ao ouvinte.
Ainda segundo Afrânio Coutinho (COUTINHO, 2006: 118,119), o estilo do gênero ensaístico possui uma relação muito próxima com a palavra falada, traduz diretamente o pensamento, a experiência e a observação do autor. A forma não é fixa e adequa-se à necessidade da expressão. O objetivo do ensaio é mostrar a verdadeira reação de uma pessoa diante do impacto da realidade e por isso, é um texto mais flexível, com maior liberdade no estilo. É o que procurou fazer Hans Staden ao escrever o seu relato de viagem, descrever tudo o que ocorreu com ele, prova disso são os nomes dos capítulos dos dois livros. Quase todos iniciam com a palavra “como”, exemplos: “Como está situada São Vicente”; “Como fui aprisionado pelos selvagens e como isso aconteceu”; “Como me trataram de dia, quando me levaram às suas casas’; “Como fazem fogo”; “Como cozinham a comida”; “Como eles contratam os casamentos”, entre outros. O caráter descritivo é tão grande que ele chega até a escrever um capítulo só para contar uma dor de dente que sentiu enquanto esteve em cativeiro.

Aconteceu que, enquanto eu estava reduzido a esta miséria (e como se costuma dizer: uma desgraça nunca vem só), um dente começou a doer-me tanto que quase desanimei de todo. O meu senhor veio a mim e me perguntou por que comia tão pouco. Respondi que me doía um dente. (17)

Em momento algum de seu texto, Hans Staden pensou em não dizer a verdade, de fazer um relato fantasioso, muito ao contrário, ele queria que todos acreditassem inteiramente em tudo o que ele iria relatar, prova disso está na dedicatória do livro. O alemão solicitou ao Dr. Dryandri, um conceituado anatomista germânico da época, que a escrevesse. Hans sabia que esta dedicatória iria ratificar tudo o que escreveu em seu relato de viagem. Dr. Dryandri aceitou o convite por conhecer há mais de cinqüenta anos o pai de Hans Staden, o qual era “tido por franco, devoto e bravo e que estudou as belas artes” (STADEN, 2000: 08), e acreditava que o filho herdara as mesmas virtudes do pai.

(...) Não posso duvidar que este Hans Staden conte e escreva com exatidão e verdade a sua narrativa de viagem, não por tê-las colhidas de terceiros, mas de experiência própria, sem falsidade, sem querer tirar glória e nem fama para si, mas sim, unicamente, a glória de Deus, com louvor e gratidão por benefícios recebidos e pela sua libertação.(18)

A finalidade desse capítulo foi a de destacar as diferenças mais marcantes entre os dois livros. Resta-nos analisar A noite é dos pássaros no contexto do Pós-Modernismo.

5 – A Noite é dos pássaros e a Pós-Modernidade.

O Pós-Modernismo, como expressão literária e artística, está inserido em um contexto de rápida aceleração da modernização pela qual vem passando o mundo desde a segunda metade do século XX. Essa aceleração vem acompanhada de fortes contradições sociais, pelas quais o nosso mundo atravessa. Localizado nesse contexto de múltiplas diferenças, em que a alta tecnologia divide espaço com a miséria e o analfabetismo, está o homem pós-moderno e sua multiplicidade, resultante desse mundo fragmentado.
De acordo com Afrânio Coutinho “a questão da conceituação de pós-modernismo já em si é bastante problemática, uma vez que se trata de um fenômeno fundamentalmente heterogêneo” (COUTINHO, 2006: 236.). Toda essa multiplicidade faz com que a caracterização de uma obra pós-moderna seja uma tarefa um tanto quanto difícil. Contudo, há que se destacar a presença de certos pontos em comum nas obras pertencentes a este estilo literário como, o ecletismo estilístico, a intertextualidade e o hibridismo. São esses pontos que iremos verificar no romance de Nicodemos Sena.

5.1 – O ecletismo estilístico em A noite é dos pássaros

Em uma produção artística, o ecletismo estilístico é a mistura entre dois ou mais estilos ou elementos estilísticos diferentes. Na obra aqui estudada podemos encontrar características românticas e simbolistas.
Embora a companheira de Alexandre, a índia Potira, viva no século XVIII, ela possui as características de uma mulher moderna, pois é uma pessoa determinada, e mesmo apaixonada; não se deixa dominar por Alexandre – muito ao contraio, é ela quem o domina – e não tem medo das ameaças de seu irmão, o valente Naêpepô-oaçu. Entretanto, em certos momentos da narrativa o autor descreve sua beleza de maneira romântica como nos trechos “Tem os pés tão delicados que pode andar na areia sem se denunciar; tem o corpo tão leve como a brisa sutil que resvala por entre a ramagem sem murmurejar” (SENA, 2003: 30.) e ainda “A tez da rapariga – finíssima, macia e lustrosa – é como a relva ao cair da tarde, eriçada pela brisa cálida que percorre os campos” (SENA, 2003: 48.), lembrando a descrição que José de Alencar faz da índia Iracema.
O simbolismo pode ser encontrado nos sonhos de Alexandre, que é o local de fuga do personagem e onde ocorre a discussão filosófica entre a vida e o após morte. É nos sonhos que o personagem afasta-se da realidade e vive um mundo de imaginação e fantasia e irá questionar sua vida e seu lado espiritual. Esses sonhos são marcados pelo uso de uma linguagem metafórica, uma das características do simbolismo. Em uma dessas passagens metafóricas o autor leva o leitor a refletir o quanto o medo nos cega e nos impede de enxergar a realidade que nos cerca.

Tenho medo. “Xande, não temas, pois vou te transformar num passarinho”, torna a dizer Potira. “De que modo?”, pergunto. “Não sei explicar, só sei que deves primeiro perder o medo”, responde ela. “Mas como perder o medo?”, pergunto. “Eu vou te ensinar. Fecha os olhos!”, ordena. “Para quê, se já não enxergamos nada aqui dentro?”, pergunto, sem entender-lhe o propósito. “Não discute! Fecha os olhos!”. Eu obedeço. E continuamos descendo. Ou subindo? Apenas sinto que estamos muito longe, mas não sei definir quanto, pois as distâncias já não se medem em quilômetros. As palavras de Nhaêpepô-oaçu cessaram de repercutir. Eu e Potira vagamos no nada. Ou no tudo? “O que estás sentindo?”, pergunta ela. “Uma grande paz”, digo-lhe. “Quando eu mandar tu abrires teus olhos sentirás medo”, adverte. “Por que, se é o escuro que tememos?”, pergunto. “Porque estávamos num mundo invertido; lá, pra onde vamos, tem sol, mas enxerga-se melhor sob o luar, o dia cega, vive-se no silêncio. É bom o silêncio, não é?”. “Sim”, respondo-lhe em pensamento.
“Pronto, chegamos; abre teus olhos!”, ordena Potira. Eu obedeço. “O que sentes?”, pergunta. “Medo, muito medo”, digo. “Muito medo é ruim, transforma o homem em coisa, mas um pouco de medo é bom, previne-o de troço ruim”, diz Potira. (19)

O autor mostra que o que nos cega é a realidade, é ela que faz com que temamos o desconhecido. Potira ordena a Alexandre que feche os olhos para transformá-lo em um pássaro. Enquanto se encontra de olhos fechados ele sente uma grande paz; contudo, ao abri-los, sente medo por estar em um mundo novo. Esse medo ocorre porque, ao encarar o novo, Alexandre depara-se com uma realidade com a qual não estava acostumado, ou seja, depara-se com o desconhecido. Essa densidade psicológica é uma característica que já vem acontecendo desde o Modernismo. Nicodemos emprega em seu texto certas características pertencentes a uma das principais correntes da ficção modernista, a corrente subjetivista e introspectiva ou psicológica, como conceituado por Afrânio Coutinho no livro Introdução à Literatura no Brasil.
Denotando acentuada impregnação esteticista, herança evidente do Simbolismo e Impressionismo, desenvolve-se a tendência na direção da indagação interior, em torno dos problemas da alma, do destino da consciência, em que a personalidade humana é colocada em face de si mesma ou analisada nas suas reações aos outros homens. (...) Outra variante desse grupo valoriza os produtos do sonho e da fantasia, criando uma atmosfera sem densidade real, mas de forte conteúdo emotivo e usando uma linguagem metafórica. (20)

5.2 – A intertextualidade em A noite é dos pássaros

A intertextualidade ocorre quando há uma relação entre textos, seja ela implícita ou explícita. No romance de Nicodemos a intertextualização com outras obras é clara; o próprio autor, no posfácio, diz que “Da primeira à última linha do livro o leitor poderá encontrar vestígios, sincronizados na narrativa, de mais de uma centena de livros, escritos em boa parte do século XVIII” (SENA, 2003: 131.). Há vários momentos de diálogos explícitos, por exemplo, com o relato de viagem do alemão Hans Staden, Duas Viagens ao Brasil, pois para iniciar a sua narrativa ele retira deste, como já mencionado desde o primeiro capítulo, acontecimentos e personagens, ou seja, o roteiro para criar a sua história.

Ultimamente, quando as mãos assim não se ocupam, seguram um velho e carunchento livro que veio dar em terra depois do naufrágio dum patacho português, e que os índios, não vendo nele qualquer utilidade, entregaram-me. Já o li tantas vezes que conheço de revestrés o seu conteúdo, reinventando as páginas extraviadas sem precisar usar toda a minha imaginação, uma vez que o livro traz uma história com a minha bem parecida. (21)

Essa intertextualidade, porém, não impede que o autor crie o seu próprio texto, pois o que ele faz é aderir originalidade a um texto já conhecido. Nicodemos apenas utiliza-se de partes do livro do alemão Hans Staden para dar iniciação ao seu processo criador e original. Portanto, o que ocorre na verdade é o que chamamos de referenciação, uma vez que a intertextualidade servirá apenas para acentuar a capacidade criadora do autor em expressar a subjetividade do narrador. O autor não se prende na história do alemão, ele a usa como cenário para iniciar seu romance e daí por diante dar continuidade à sua história, e com muita originalidade.

5.3 – O hibridismo em A noite é dos pássaros

A relação entre a Literatura e a contemporaneidade faz com que os textos das obras atuais sejam influenciados pela pluralidade de tendências que estamos passando. Nos dias de hoje, vivemos em um mundo destituído de valores, com padrões diferenciados e uma variedade cultural muito grande. Essa mistura de valores, linguagens, costumes e etc. reflete-se em nossa literatura.
No romance aqui estudado, encontramos o hibridismo no uso da língua tupi, que no texto é tão importante quanto a língua portuguesa. O autor usa o tupi com praticamente a mesma freqüência com que usa o português. Em um dos diálogos entre Potira e Alexandre, chega até a misturar o português com o tupi.

“Requau será maha xa nehnhe xa icó?” (você entende o que estou falando?)”, pergunto, admirado.
“Xa cenu, intimahã xa quáu” (ouvi, mas não entendi), ela responde.
“Reiúmuhê putári será portugues nhehenga?” (você quer aprender português?). “Intimahã iauçú reté” (não é muito difícil), digo-lhe, comovido com o interesse da cunhantã.
“Xa có putári” (quero). “Xa nhenhe depressa” (hei de falar depressa).
“Reiúpirú ãna será renhehe” (já está começando a falar), incentivo-a.
“Abá nheenga oicoeté” (língua dos índios é muito diferente).
“Iaçó iaiumuhê” (vamos aprender), digo-lhe.
“Auiébé!” (ótimo!). “Mas nde pereba aiposanongine” (antes curarei tuas feridas), fala Potira, já misturando tupi com português, como se inventasse outra língua. (22)

O hibridismo também ocorre devido à presença de vários temas que compõem a narrativa. A mistura entre fantasia, mito, sonho e o real, a questão filosófica da vida e o após-morte que é discutida ao longo do livro em paralelo à relação amorosa entre Potira e Alexandre, além do uso de expressões populares, bem atuais para uma história ocorrida no século XVIII, misturadas a um texto de linguagem poética e extremamente cuidada.


CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho, nos propusemos a fazer uma análise crítica do romance A noite é dos pássaros, do escritor Nicodemos Sena. Logo no início, a fortuna crítica ressaltou a habilidade inventiva do autor para compor uma obra de ficção, pois mesmo usando como elemento criador de sua narrativa fatos históricos acontecidos com Hans Staden na viagem que fez ao Brasil, Nicodemos Sena consegue montar seu romance de maneira muito independente, sem prender-se ao livro do alemão, mostrando que não se apega em nada ao gênero ensaístico e consegue, facilmente, compor sua ficção.
A capacidade em manter a atenção do leitor até o final da trama é outra grande habilidade do autor. Nicodemos sabe como conduzir o fio narrativo, pois ele faz com que os leitores vivenciem as mesmas aflições do personagem-narrador e diverte-os com os momentos de ironia que ele consegue adicionar à tensão do romance. Em meio à trajetória pela qual passa a personagem principal, Nicodemos apresenta aos seus leitores os hábitos, costumes, mitos e rituais da cultura indígena, tudo isso, sempre como elementos de valorização.
Soma-se a isso uma discussão sobre a questão entre a vida e o que nos espera após a morte, além de abrir os nossos olhos para que passemos a enxergar as outras verdades que estão à nossa volta. Todas essas discussões são feitas em um ambiente de sonhos, fantasias e mistérios, com o uso de uma linguagem metafórica, de grande simbolismo e com referências a outros textos escritos na época em que se passa a história. O híbrido faz-se presente na mistura de linguagens, costumes e temas, adicionando ao texto uma pluralidade de significações e discussões.
Ao tratar de um assunto pouco abordado nos romances atuais – a relação entre o índio e o homem branco – Sena demonstra ser um escritor que não precisa render-se a temas preferenciais da “massa” ou cair na banalização para poder conquistar os leitores. Assim, nos presenteia com um romance muito bem cuidado, tanto na linguagem, quanto visualmente, por meio das ilustrações. Convida a imaginação dos leitores a um mundo onírico e a voar nas asas dos pássaros junto com ele.
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*JULIA VALESCA PAIS é formada em Letras – Português/Inglês pela Universidade Veiga de Almeida – RJ. Defendeu monografia sob o título “E os pássaros pousaram sobre o meu papel – Reflexões críticas sobre o romance A noite é dos pássaros”, do escritor paraense Nicodemos Sena, sendo aprovada com nota máxima. Atualmente cursa pós-graduação em Língua Portuguesa na mesma universidade, participa de um grupo de pesquisa que estuda o tema amizade na Literatura Brasileira dos séculos XVIII ao XX e está em processo de preparação para o mestrado, quando desenvolverá pesquisa sobre a obra de Nicodemos Sena.


REFERÊNCIAS

(1) FERNANDES, Dirce Lorimier. A saga de um naturalista devorado por canibais em ritmo de folhetim. O Globo. Rio de Janeiro, 08 de maio de 2004. Prosa & Verso, p.05.
(2) CARNEIRO, Caio Porfírio. Universo metafórico. Estado de Minas. Minas Gerais, 20 de Dez. 2003. Caderno Pensar, p.04.
(3) GONÇALVES, Adelto. A Amazônia resgatada. O Primeiro de Janeiro. Porto, Portugal, 20 de Dez. 2004. Das Artes das Letras, p.04.
(4) STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: Beca produções culturais, 2000, Livro II, cap. 01, 28, 29, 36 p. 02, 37, 38, 40, 41 e 48.
(5) STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. São Paulo: Beca produções culturais, 2000. Livro I, cap. 54 p. 119
(6) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003, p.15, 16, 22 e 24.
(7) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p. 86-87.
(8) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p. 127-128.
(9) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.28, 34, 86, 128.
(10) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p. 76.
(11) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p. 50.
(12) STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. São Paulo: Beca produções culturais, 2000. Livro I, cap. 39 p.93.
(13) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.97.
(14) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.47,48.
(15) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.110 a 113.
(16) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.13.
(17) STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. São Paulo: Beca produções culturais, 2000. Livro I, cap. 27 p.68.
(18) STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. São Paulo: Beca produções culturais, 2000. Livro I, dedicatória p.09.
(19) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.97,98.
(20) COUTNHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p.300,301.
(21) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.13,14.
(22) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.46,47.
*PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. Rio de Janeiro: Presença, 1989.
**COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6.ed. São Paulo: Global, 2006. 550p. ISBN 85-260-0560-X



ANEXO


ENTREVISTA COM NICODEMOS SENA, AUTOR DO LIVRO A NOITE É DOS PÁSSAROS.

Julia Pais: O nome do personagem principal de "A noite é dos pássaros", Alexandre Rodrigo Ferreira, é uma homenagem ao naturalista baiano nascido no século XVIII Alexandre Rodrigues Ferreira, mas que é considerado português por ter partido aos 14 anos para Portugal. Porque o senhor decidiu homenageá-lo?

Nicodemos Sena: Para o meu personagem naturalista, busquei um modelo que enfeixasse em si, ao mesmo tempo, o ideal científico, a consciência crítica e a tolerância diante dos costumes do homem primitivo. Encontrei esse modelo em Alexandre Rodrigues Ferreira, que, mesmo vivendo muitos anos em Portugal, nunca deixou de ser brasileiro, pois só alguém muito apaixonado pelas coisas do Brasil seria capaz de escrever uma obra como "Viagem Filosófica”, o registro mais completo da natureza e das populações brasileiras de meados do século XVIII. Alexandre foi também o naturalista pioneiro da Amazônia. Tudo isso, entretanto, não evitou que ele fosse injustiçado, pois sua obra permaneceu inédita durante quase duzentos anos; só em 1974 o governo brasileiro resolveu editar “Viagem Filosófica”, enquanto em Portugal o esquecimento foi absoluto. Ele levou essa tristeza para o túmulo, em 1815.

Julia Pais: A religião cristã do homem branco não é valorizada pelo personagem Alexandre. Contudo, a todo tempo ela é citada. É possível dizer que aí está a visão do autor, o qual acredita que sempre há uma força superior “olhando por nós” e só não usou a valorização por parte de Alexandre a fim de não sobrepujar a religião indígena no romance?

Nicodemos Sena: Relembremos que o meu personagem naturalista anuncia-se ateu no começo da história, e essa postura intelectual era bastante arriscada, numa época em que a “Santa Inquisição” ainda perseguia quem ousasse divergir do cristianismo oficializado. Neste ponto, o personagem desvia-se do seu modelo, pois, a despeito de homenagear Alexandre Rodrigues Ferreira, não deixei que a “história” individual ou coletiva se impusesse à narrativa. Na verdade, o ateísmo do protagonista é um expediente do qual me vali a fim de questionar o dogmatismo religioso da Igreja Católica Apostólica Romana, em sua distorcida ânsia evangelizadora em plagas americanas. De outro lado, a tolerância que o personagem naturalista mostra em relação aos costumes bárbaros não autoriza a pensar que o ateu, sob os eflúvios do amor da indiazinha Potira, convertera-se a qualquer forma de deísmo. No fundo, menos que afirmar uma concepção religiosa ou explicar a origem do mundo, quis chamar a atenção do leitor para o antigo e ainda não superado conflito étnico-cultural entre o elemento selvagem e o civilizado, que permanece como um vulcão prestes a explodir no povo miscigenado. Entendo que a arte deve, ao mesmo tempo, ser lúdica e “pedagógica”, deleitando e também elevando a alma. Ao confrontar as crenças selvagens à visão civilizada, numa época que ainda nega existência real aos povos indígenas, estou apenas cumprindo a função social do artista que deve se opor a qualquer tipo de injustiça. Mas não tenho a priori uma mensagem moralizadora nem pretendo conduzir o leitor a optar por um destes dois mundos, até porque, infelizmente, tanto a teogonia indígena quanto a fé católica não se mostraram capazes de domar a besta que vive dentro do homem.

Julia Pais: A noite é dos pássaros apresenta características do romance folhetim e do romance histórico. Como devemos caracterizá-lo então? Como folhetim, histórico ou uma mistura dos dois?

Nicodemos Sena: Antes da edição em livro, “A noite é dos pássaros” apareceu em forma de folhetim no jornal “O Estado do Tapajós” (2003). Uma questão de oportunidade, já que o arrojado editor amazônico aventurou-se a publicar um romance nas páginas do seu jornal, o que muitos consideraram “loucura”, pois há muito um jornal brasileiro não lançava um folhetim. Felizmente, os leitores do jornal acompanharam avidamente a história. “A noite é dos pássaros” possui ingredientes do gênero folhetim – como o “suspense contínuo, enredos que se imbricam gradualmente, numa intencional mistura de tempo e espaço”, conforme observou a crítica paulista Dirce Lorimier Fernandes, em resenha publicada em “O Globo” (Rio de Janeiro, 8 de maio de 2004). Tais ingredientes permitiram que o tema repugnante do canibalismo adquirisse sabor agradável. Na verdade, “A noite é dos pássaros” é uma narrativa onírica, daí seu ritmo vertiginoso, característica também do romance-folhetim.
Quanto à relação de “A noite é dos pássaros” com o “romance histórico”, observo que, em “Guerra e Paz”, Tolstoi mostrou que a ficção pode ser mais verdadeira do que o relato histórico, isto porque a literatura de ficção, ao contrário do texto de História, instaura a dúvida e motiva o leitor a escrever a sua própria versão (na verdade, não há “história” nem “estória”, mas unicamente “versões”). “A noite é dos pássaros” é, antes de tudo, uma obra da imaginação. Há, sim, um argumento histórico sacado das crônicas, mas esse é apenas a tela que serve ao escritor. Há sim, como pano de fundo, o choque étnico-cultural que se dá entre o elemento autóctone e o invasor. E mesmo nisto há muito de ficção; ou acaso alguém é capaz de dizer com absoluta certeza de que modo viviam os primitivos moradores do Brasil? Encontrei muito preconceito e muita fantasia nos testemunhos, o que me permite afirmar, sem medo de errar, que a história até aqui conhecida do Brasil não passa de uma invenção (ou uma versão, ou inversão, ou perversão) dos vencedores. Através da ficção, que se assume desde logo como fantasia, procuro chegar senão à vida real, pelo menos à hipotética vida dos vencidos. “A noite é dos pássaros”, ao desmistificar o chamado “real”, pondo-o no mesmo plano da fantasia, aproxima-se mais da “narrativa onírica” do que do romance “histórico” ou do mero folhetim, cuja estrutura muitas vezes se presta apenas ao entretenimento.

Julia Pais: No posfácio do livro o senhor diz que usa o tupi antigo na fala dos personagens devido ao apelo da narrativa passada no século XVIII e pela grande importância que essa língua representa para a nossa cultura. Contudo, pergunto se a finalidade também não foi a de lembrar aos leitores que a língua tupi deve ser considerada como uma herança que não pode ser esquecida e, portanto, devemos prezar pela sua valorização?

Nicodemos Sena: Sim, a língua tupi deve ser valorizada, não como coisa morta, de museu, pois ainda é falada por 270 mil pessoas, de 400 povos indígenas, através de 170 línguas derivadas do tupi antigo (o tupinambá). A família mais numerosa do tronco tupi é a tupi-guarani, cujas línguas (19 no total) são faladas por 33 mil índios, localizados em sua maioria nas áreas de floresta tropical e subtropical. Nessa família, o guarani (15 mil falantes) e o tenetehara (6.776 falantes) destacam-se entre os demais idiomas. Mas também as línguas do tronco macro-jê, que compreende 8 línguas faladas principalmente nos campos de cerrado, devem ser valorizadas.
O tupi foi amplamente usado nas expedições bandeirantes no sul do país e na ocupação da Amazônia. Os jesuítas estudaram a língua, traduziram orações cristãs para a catequese e o tupi se estabeleceu como língua geral (“nhengatu”, língua boa), ao lado do português, na vida cotidiana da colônia. Em 1757, o tupi foi proibido por uma Provisão Real. Nessa época, o português se fortaleceu com a chegada no Brasil de um grande número de imigrantes vindos da metrópole. Com a expulsão dos jesuítas do país, em 1759, o português fixou-se definitivamente como o idioma do Brasil, e o tupi entrincheirou-se nas aldeias indígenas, onde continua sendo falado em suas formas derivadas.
O português sofreu grande influência das línguas nativas, especialmente do tupi, a língua de contato entre europeus e índios. Do tupi subsistem palavras referentes à flora (como abacaxi, buriti, carnaúba, mandacaru, mandioca, capim, sapé, taquara, peroba, imbuia, jacarandá, ipê, cipó, pitanga, maracujá, jabuticaba e caju), à fauna (como capivara, quati, tatu, sagüi, caninana, jacaré, sucuri, piranha, araponga, urubu, curió, sabiá), nomes geográficos (como Aracaju, Guanabara, Tijuca, Niterói, Pindamonhangaba, Itapeva, Itaúna e Ipiranga) e nomes próprios (como Jurandir, Ubirajara e Maíra).
Além disso, o ritmo bárbaro e a profusão de cores do tupi impregnaram-se de tal modo na língua portuguesa do Brasil, que esta, comparada ao português falado em Portugal, parece alegre e rejuvenescida. Esse ritmo e essas cores também marcam a literatura tipicamente brasileira, desde “Prosopopéia”, de Bento Teixeira, passando por “O Uraguai” (Basílio da Gama), “Caramuru” (Santa Rita Durão), “I-Juca Pirama” e “Os Timbiras” (Gonçalves Dias), “Iracema” (José de Alencar), “Cobra Norato” (Raul Bopp), e, mais recentemente, “Repertório Selvagem” (Olga Savary).
Em “A noite é dos pássaros”, procurei verter em português o espírito selvagem dos nossos antepassados indígenas. Não escrevi o livro diretamente em tupi porque esta língua, a partir da proibição imposta pelo Marquês de Pombal (1757), tornou-se desconhecida para milhões de brasileiros, que chegam mesmo a crer que o tupi esteja morto, quando, na verdade, é o tupi da época do “descobrimento” que não é mais falado. Através de suas formas derivadas, o tupi continua tão vivo quanto o português, que também já não é o mesmo português que se falava na época da formação do Reino de Portugal. Hoje não é fácil entender o português de “Os Lusíadas” ou das “Ordenações Filipinas”, mas ninguém cometeria o equívoco de afirmar que o português morreu. Todavia, o “fim” do tupi foi decretado. A sociedade brasileira teima em minimizar ou negar a herança indígena, como se desse modo pudesse apagar um passado cheio de massacres e genocídios. Equívoco absurdo, cometido não só pela massa ignara, mas também por gente muito esclarecida. Machado de Assis, por exemplo, no artigo “Instinto de nacionalidade” (1873), escreveu: “É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária”. Paradoxalmente, no mesmo artigo, Machado reconheceu o valor de “Iracema”, uma obra que bebe da cultura indígena.

Julia Pais: É nítido que para escrever esse romance foi necessária uma grande pesquisa, e isso está comprovado nas referências apresentadas no final do livro. Pode-se dizer que isso demonstra que o senhor teve uma grande preocupação e compromisso com o que iria apresentar aos leitores sobre a cultura indígena, mesmo tratando-se de uma obra de ficção?

Nicodemos Sena: O estudo racional do conhecimento humano vem de Aristóteles e foi desenvolvido, no século XVI, por Francis Bacon, que apresentou sua classificação das ciências, adotando o critério geral das faculdades da alma humana: “memória”, “razão” e “imaginação”. A História apresenta-se como “ciência da memória”, a Filosofia como “ciência da razão”, e a Poesia como “ciência da imaginação”. Adoto a classificação de Bacon. Quando me lanço a escrever um romance, procuro pôr em atividade todas as faculdades da minha alma. Apenas inverto a ordem de Bacon. Em primeiro lugar, ponho a imaginação, através da qual se concebe, gesta e conforma a obra de arte, pois a arte é essencialmente forma. (É também pela forma que a obra de arte realiza sua função lúdica); em seguida, coloco a razão, através da qual o leitor, convidado a “filosofar” sobre o tema, eleva-se acima do que é mesquinho. (O próprio autor é um “filósofo”, enquanto o romance é o instrumento com o qual ele deseja libertar os outros seres humanos); e, por último, a memória, sem a qual, em vez de uma história, teríamos um mero ajuntamento arbitrário de acontecimentos. (Mesmo na “escritura automática” dos surrealistas há uma ordem interna nos episódios, produzida pelo “fluxo” inconsciente do pensamento). Não há romance sem memória, assim como não há vida humana sem história. Nem pode haver romance sem a razão, a menos que não se queira resolver a perplexidade instaurada pela imaginação. (Há autores que buscam única e exclusivamente causar a perplexidade ou o espanto, como se a literatura fosse simplesmente uma câmara de terror). A imaginação, por mover-se na penumbra do inconsciente, talvez prescinda da pesquisa, a menos que o escritor se contente com o mero jogo das palavras, a “arte pela arte”, pouco se importando com os símbolos que elas representam. O mesmo não acontece com a razão e a memória. Como colocar em cena, por exemplo, o canibalismo praticado numa sociedade primitiva, sem estar muitíssimo seguro do que ele representa para aquela sociedade? Como dar voz ao selvagem, sem conhecer a estrutura de sua língua e o seu psiquismo? Como contrapor sensibilidades diversas sem conhecer as suas causas materiais? Em “A noite é dos pássaros” há uma combinação de imaginação, razão e memória. E muita pesquisa.

Julia Pais: No último capítulo, “Já escuto o rufar dos tambores”, uma águia que está conversando com o personagem principal (que se transformou em um pássaro) faz uma reflexão sobre a “cegueira” do homem em enxergar o invisível. Ele diz que para que o homem possa compreender a vida é preciso que ele ajuste os símbolos à realidade. É possível fazer uma relação desse trecho do romance ao mito da caverna de Platão?

Nicodemos Sena: Creio que há pontos de contato entre o diálogo do livro e o mito escrito por Platão. Por exemplo: a conversa entre o personagem e a águia acontece num “vôo”, assim como, no mito da caverna, a contemplação do mundo superior é o símbolo do caminho da alma em direção ao mundo inteligível; tal qual no mito da caverna, o prisioneiro Alexandre vê-se convidado a libertar-se da cegueira do mundo sensorial (visível) e buscar a sabedoria no mundo invisível; o conhecimento do verdadeiro Ser representa ainda a passagem do temporal ao eterno. A relação desse trecho do meu livro com o mito da caverna de Platão pode ser feita, independente da minha intenção, pois confesso que não pensei no mito da caverna quando escrevi “A noite é dos pássaros”. Entretanto, observo uma divergência entre os dois textos: a águia convida o personagem aprisionado a buscar a liberdade no auto-conhecimento, mas informa que este não poderá ser alcançado unicamente pelo esforço do humano, isto por que a liberdade que se alcança com a aquisição da sabedoria é uma dádiva do Um, o Todo-Poderoso. O guia de “A noite é dos pássaros”, 2400 anos depois de Platão, não crê que o homem consiga ver a realidade apenas com as luzes da ciência.