Sunday, June 10, 2007

YARA CECIM :



Por NICODEMOS SENA*


Foi com imenso prazer que reli os “contos fantásticos da Amazônia”, de Yara Cecim, que a Editora Cejup relançou em 2004, sob o título de “Lendário”. Ler as narrativas de Yara Cecim é uma experiência ímpar. Para começar, a gente se sente como a narradora de um dos contos (ou seja, como a própria autora), numa daquelas calçadas altas das pequenas cidades e vilarejos da Amazônia, onde, "ao cair da tarde, as famílias punham as suas cadeiras de balanço que iam e vinham, enquanto a bandeja de prata, com as xícaras de porcelana chinesa, corria a roda, animando os mais sonolentos". A “cadeira de balanço” assume aí a mesma função da “fogueira” em torno da qual os primitivos habitantes da região se reuniam, depois de um dia cansativo, para contar histórias.Yara Cecim nasceu no dia 13 de maio de 1916, no sítio Caxambu, às margens do rio Tapajós, no município de Santarém, oeste do Pará, Amazônia brasileira. De sua convivência com os mitos e lendas da região, extraiu a matéria-prima de seus contos. Trata-se de uma exímia contadora de histórias, um talento nato. Entre os escritores da Amazônia, Yara Cecim é o que melhor soube verter a tradição oral dos povos amazônicos para literatura culta. E o fez com a simplicidade e a paciência de uma Penélope que, durante anos (por amor à Vida, em sua pureza de mulher totalmente dedicada à família), evitou qualquer veleidade literária, estreando em livro só aos sessenta anos de idade.Os premiados contos do “Lendário” haverão de se constituir, com o passar dos anos, em importante fonte de inspiração para muitas gerações de jovens escritores da Amazônia. Pois Yara Cecim demonstra estar ciente do sistema econômico que se alimenta das riquezas (e muitas vezes do próprio sangue) da região. No conto “A velha do casebre”, por exemplo, faz alusão ao astucioso escambo realizado na “Venda”, onde o personagem Mundico coloca o saco (com peixes) na balança e seu Manduca, dono do estabelecimento, confere o peso, passando a discriminar a mercadoria que o outro irá levar: arroz, feijão, sal, querosene, sabão, um corte de alfacinha, papel de abade, um pouco de fumo forte, migado, e dois dedos de pinga (todos sabemos os efeitos deletérios do vício da cachaça que o colonizador introduziu na vida de índios e caboclos). Entretanto, a escritora desloca o seu maior interesse para o rico imaginário que alimenta a cultura amazônica. E não faz isso para fugir do “real”, mas em busca da “fala” abafada dentro de um sonho que virou pesadelo (o pesadelo da dominação a que foi submetida a sua terra).E é na busca desse algo que se perdeu que Yara Cecim, de modo consciente ou não (pouco importa), construiu o fio e o ritmo dos seus maravilhosos contos. Mas a simplicidade de sua voz narrativa é apenas aparente, pois esconde a sofisticação de um gênero literário que se tornou complexo nas mãos de extraordinários narradores de diversas épocas e lugares – desde o autor anônimo de “Os escritos de Saragosse” ou a Sherazade das “Mil e uma noites”, até Hoffmann, Gautier, Nerval, Poe etc.Temas caros ao gênero fantástico aparecem no “Lendário”, como a entrada em cena do elemento sobrenatural, que gera espanto e hesitação no leitor, e a metamorfose entre os seres, o que elimina a fronteira entre a matéria e o espírito (tais temas também foram desenvolvidos por Vicente Franz Cecim, nos livros de “Andara”, e por mim, em “A noite é dos pássaros”). Em “A porca e o soldado”, a história de uma grande porca, que teria sido vista por algumas pessoas quando voltavam de uma festa e que foram perseguidas por esse animal, que batia os dentes, espumava furiosamente e tinha uns dois metros de comprimento, com orelhas enormes que balançavam, quase arrastando no chão. A porca, como depois se descobriu, era uma velha da cidade, que assim cumpria o seu fado. Esse conto faz lembrar da lenda “Quando os índios Caxinauá tinham virado porcos”, segundo a versão livre de Herbert Baldus baseada na tradução literal de Capistrano de Abreu (“Lendas dos índios do Brasil”). Noutro conto, “Taú-Taú”, um cozinheiro de acampamento, enquanto aguardava sozinho os companheiros que haviam ido ao trabalho, viu irromper na clareira uma horda de animais, que não podia distinguir se eram criaturas humanas ou macacos, de todos os tamanhos. Antes ouvira vozes que se aproximavam e ele não conseguia entender se eram gritos, uivos ou lamentos. Os homens (ou macacos?) retalharam e trituraram com seus dentes todos os homens do acampamento, menos o cozinheiro. Depois ficou claro que se tratava dos homens-macacos que vieram das entranhas da mata devorar a carne (e a alma) dos humanos, em ritmo de pesadelo. Não é à toa que também este conto faz lembrar de uma lenda, “A caveira rolante”, recolhida entre os índios Tembé do Pará e Maranhão. Na lenda, os caçadores deixaram só um menino na aldeia, quando se fizeram ouvir vozes de corujas, onças e outros animais noturnos, de permeio com gemidos humanos e o estalar de ossos quebrados. Na lenda e no conto havia ossos triturados e pedaços de carne humana e ninguém acreditou nos que contaram as histórias, tomando-os por loucos. Pois o imaginário amazônico muitas vezes parece loucura, mesmo para quem dele se alimenta. Nos contos de Yara Cecim os peixes (seres “reais”) e as sereias (fruto de “fantasias”) nadam nas mesmas águas (v. o conto “Casa branca da praia”); a morte se denuncia na voz das pessoas e no sopro dos pássaros e das coisas (“Faltava algo na voz de Antônio nessa tarde” – em “O vaqueiro que a vaca matou”); e os macaquinhos “são gente como nós” (em “Sino Salomão”).É compreensível que aconteça isso nos contos de Yara Cecim. É que seus motivos não são os mesmos dos de seus confrades estrangeiros. Enquanto Poe e Nerval, por exemplo, sofreram na infância com desarranjos familiares, Yara Cecim cresceu num cálido ambiente familiar, sem excêntricas inquietações que pudessem explicar o cunho fantástico de suas narrativas. Através da pena mágica de Yara, o impossível aconteceu, isto é, o portentoso contexto amazônico (com suas vastidões e belezas naturais), que sempre desorientou a quantos se atreveram a desenhar literariamente a vida amazônica, desta vez não invadiu o texto, mas encontrou a sua expressão mais cabal e adequada.

*Nicodemos Sena é escritor e jornalista paraense radicado em São Paulo, autor, entre outros, de “A espera do nunca mais - uma saga amazônica” (Editora Cejup, 1999, Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos, da União Brasileira de Escritores/RJ).

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