Thursday, September 25, 2008

ALEXANDRE BONAFIM ESCREVE SOBRE OLGA SAVARY:



A viva carne da poesia de Olga Savary

Intensa, febril, pulsante, a palavra de Olga Savary alucina-nos, atira-nos em direção ao desejo despido de medos e, por isso, docemente selvagem, perturbador; desejo que arrebata todas as fibras do ser e nos consome em alegre agonia, em acalanto de suspiros e ternuras. Telúrica, ligada às matrizes da vida, a poesia de Olga é expressão da mais cega vontade da carne; é explosão da natureza desnuda. Eis a grandeza da poeta: dar forma, pela palavra, às pulsões vivas do corpo, aos deuses primitivos que queimam nosso âmago, que nos deixam em transe febril.
Por outro lado, a sabedoria da poeta reside, antes de tudo, no pleno domínio dos recursos líricos. Se a palavra arde em suas mãos, ganha corpo, sangue, é porque a poeta sabe dar a justa medida formal aos conteúdos. É o que podemos ver, por exemplo, em “Signo”, obra prima de seu famoso livro Magma:

A respiração de novembro e de sua véspera
(outubro) arde-me não no cérebro
nem no ombro
mas – anel de fogo – nas ancas
e nas entranhas.
Em ti eu amo os amores todos.
Eu não podia aceitar isto
mas aceito agora. A vida
não cessa, é eterno continuar.
Por mais que se queira
o ávido sangue não será saciado.
A tarde é quem está bebendo este desejo
conivente com a violência
da patada da fera amada.
E numa noite de novembro
é que fiquei pronta para a vida
ao ver o mar refletido no teu corpo
e ao meu rosto assomar todo o desastre.

O cosmo é conclamado à festa da vontade: o mar espelha-se no amado e, vice-versa, porque o desejo é total volúpia do inteiro universo. A bela metáfora “anel de fogo” desvela a pulsão dessa ardência superlativa, desse amor hiperbólico a conter todos os amores.
“Magma” pertence à categoria daqueles livros raros, em que quase não conseguimos encontrar um poema de vôo menor. Nesse aspecto, é obra importante, tanto tematicamente (por ser libérrimo no trato do desejo) quanto formalmente (impecável quanto ao manejo de nossa língua).
Em “Carne viva” os signos “cavalo” e “mar” formam um elo metafórico de grande expressividade. Cavalgar e nadar, pelas ondas do mar, desvelam a expressividade da ação corporal dos amantes, a volúpia do transe sexual. Mas a fúria desse movimento carnal vai além. O eu lírico não apenas está sob o cavalo, como também é escoiceado pelo animal, em bela hipérbole da delicada agressividade do amor físico:

Que é de mim sobre este cavalo em maio? Lanceando-me o abrasado flanco com o fogo de seu coice como o fervor de um jato d’água – arquiteturas ambas em fúria – este cavalo em maio é a guerra sazonada em meu corpo-recesso-de-fruta tal que tramasse nesse rio nascente a fermentação da forma absoluta, A(h) mar!
Em um dos poemas mais felizes do livro, intitulado “Venha a nós o vosso reino”, Olga define, com exímia precisão, a paixão, o estertor amoroso, em metáforas e imagens de grande beleza:

Cheios de imagens os olhos
e de silêncio os ouvidos.
Palavras: quase nada.

A cor do barro primitivo em tua pele,
terra-mãe, vinho de frutos, fogo, água,
em ti se nasce e em ti se morre.

Vais me recolhendo e recompondo
no labirinto-búzio-alto-das-coxas,
presságio de submerso jardim,

um ideal jardim em que me apresso
e tardo retardar a troca das marés
quando para ti me evado.

O que é amor senão a fome rara,
o susto no coração exposto
que com a chama ou a água devora,

é devorada, que desdenha a mente
por uma outra fome, vago pasto
água igual a fogo, fogo como lava?

Amor foi uma volta inteira de relógio mais 7 horas.
Amor: chega de gastar teu nome:
agora arde.

O imperativo do último verso faz toda ação do texto transcorrer para a vida. Em viva carne, em aberto pulso, o amor, em belo carpe diem, é conclamado à ação. E que a palavra, vigorosa, intensa, dessa grande poeta, leve seus leitores ao orgasmo não só do verbo, mas da vida em febre e desvario.

SAVARY, Olga. Repertório Selvagem. Rio de Janeiro: Multimais, 1998.

Monday, May 19, 2008

SOBRE 'O TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS' POR PAULO DE TOLEDO :



NO DESERTO COM MARCELO ARIEL


Quantos poetas brasileiros contemporâneos conseguem fazer uns versos como estes?

A noite
caindo como um suicida,
refaz o movimento
de uma pérola descolando

Meu camarada Marcelo Ariel lançou, há coisa de um mês, seu livro Tratado dos Anjos Afogados, no qual podemos ler os versos acima, que estão no poema “No deserto com Paul Bowles”.
Como eu disse, o Ariel é meu camarada, portanto, isso que você está lendo não é uma crítica distanciada, fria, de um livro de poemas. Não, este texto é uma forma de abraço.
Mas, para ser inteiramente sincero comigo mesmo e, principalmente, com o Ariel, devo dizer o que eu “senti” lendo esse livro que, certamente, é melhor do que 90% dos livros de poemas lançados nos últimos tempos por estas plagas.
Primeiramente, o poema “No deserto com Paul Bowles”, na minha opinião, i.e., pro meu gosto, poderia ter a metade do tamanho. Não acho que o resto do poema faça jus à genialidade dos versos citados.
Me parece que algo parecido acontece com o livro. O Tratado dos Anjos Afogados tem em torno de 80 a 90 poemas. Se tivesse 50, o livro conteria realmente o “mel do melhor” do Ariel. Não que haja poemas ruins, pelo contrário. Não há um poema “amador”, daqueles que lemos em muitas revistas literárias (em papel ou em pixel) e blogs.
Vou tentar me explicar.
Imagine se você pegasse um livro de coletânea de contos do Machado e essa coletânea misturasse contos geniais como “Missa do Galo”, “A Cartomante” e a “A Causa Secreta” (da segunda fase machadiana) com contos otimamente escritos, mas sem aquela mesma genialidade, como “Miss Dollar” e “Frei Simão” (da sua primeira fase). Obviamente, você leria todo o livro, inclusive esses últimos — que são deliciosos —, mas quais contos você faria novas e novas e novas releituras? Creio que você já entendeu meu ponto de vista.
Então, se o Tratado dos Anjos Afogados contivesse mais ou menos 50 poemas, ele seria como uma luta de boxe (vou no embalo do Cortázar) que durasse apenas um round e os contendores tivessem que partir pra cima sem nem tempo de “estudar o adversário”.

Mas, voltemos aos versos que iniciam esta peroração (puxa, nunca usei essa palavra na minha vida!).

A noite
caindo como um suicida,
refaz o movimento
de uma pérola descolando

Logicamente, cada um pode “ver” o que quiser nesses versos.
Eu vejo o seguinte: a manhã chegando com sua luz (a pérola/sol) e o som do suicida caindo no solo como o som quase inaudível da pérola que se descola.
Delicadeza. Ternura. Beleza.
A luz e a treva num espetáculo de cores e sons, de vida e morte, de poesia e silêncio.
Ouçamos o gerúndio (des-co-LAN-do) tornando looonnngooo e leeennntooo o movimento das coisas, e, portanto, tornando perceptível o que quase sempre oculta-se em ostras inacessíveis. (Não é essa a tarefa do poeta?)
O som da pérola descolando: jóia talhada em versos.


Paulo de Toledo