Thursday, December 28, 2006

A BUSCA DE FLORIANO :




Imagem : Floriano Martins






A grande arte é como as águas de um rio, ou como a vida no universo, que não têm começo, meio nem fim. Foi o que me fez pensar a recente leitura do poema "Extravio de Noites", do cearense Floriano Martins (Maneco Livraria & Editora, 2001, Caxias do Sul).
Em busca da palavra perdida, o poeta vai bem além: ao tempo em que nem havia palavra, quando as coisas ainda estavam por ser nomeadas. O paradoxo, entretanto, é que ele consegue isso por meio de uma profusão torrencial de palavras, as quais, reunidas num só caldeirão, são como que o troar de uma legião de anjos/demônios. Pela "linha do excesso", do transbordamento, Floriano Martins empreende a recuperação do elo perdido entre ser e tempo, palavras e coisas.
Eis um exemplo retirado a esmo do poema: "Agimos com palavras, e caímos em ardil / quando não as prezamos acima de tudo. / Não importa que seja a palavra empenhada / em um jogo de cartas ou sobre o corpo / de uma puta. Que esteja escrita em versos / ou em discursos de posse, nada a diferencia. / A palavra dada antecede qualquer ação, já o dissera um cavalo pela boca de Tolstoi. / Construa ou destrua, tudo no homem se define / por sua palavra. Concebe a Deus e se põe / acima dele, porque assim está escrito. / E escrito está o que por vezes se modifica. / Porém irremovível parece restar um princípio: / a palavra valerá nada se não valer o homem".
Na busca da palavra extraviada, do elo perdido, da revelação primordial, Floriano Martins se lança nas águas da poesia (e da vida, que para ele andam misturadas).
Em vez de reduzi-lo a uma Escola literária (o Surrealismo), prefiro filiar a poesia de Floriano Martins a um certo "modo de olhar o mundo", original, incômodo, contestador da asséptica "poesia" oficial, usada como trampolim. Em "O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América Latina" (Escrituras Editora, 2002, São Paulo), o próprio Floriano mostra-nos o vínculo entre gerações "malditas" de poetas latino-americanos. Trazendo fragmentos de poemas e trechos de palestras/entrevistas dos poetas, "O Começo da Busca" apresenta-nos esse modo de ver/viver o mundo que tanto mal-estar tem causado aos poetas "de resultado".
"Não se trata de uma escola literária (o Surrealismo), mas sim de uma concepção total do homem e do Universo: é um humanismo poético, em que no centro está o homem – não a divindade – projetado ao absoluto e ao infinito, com todos os poderes implícitos na condição humana", escreveu o poeta argentino Enrique Molina, em favor do Surrealismo. "Poética pautada por um inconformismo absoluto, dentro do que ele próprio defende como ‘um permanente gesto de desafio à condição humana’, em Molina convivemos com a linguagem em profundo estado de questionamento, o poema em ‘propósito desesperado’ de mudar a vida, de iluminar as obscuras zonas do ser, de estabelecer, mediante a inesgotável torrencialidade das imagens, a interseção dos contrários", assim Floriano Martins refere-se à poesia de Enrique Molina.
Essa "torrencialidade das imagens" talvez seja a mais forte característica dos textos "surrealistas". "O Começo da Busca" fornece-nos exemplos: "O canto / nasce do sangue do coração noturno / os pássaros passeiam / por entre gatos fosforescentes. (...) Cada olhar é uma árvore que navega em um rio / uma árvore que cresce em palavras líquidas / até que transborde o céu adormecido" (Aldo Pellegrini, Argentina, 1903-1973). "A prostituta estirada na rua / na pompa do crime recém-cometido, / é imensa como o silêncio de Deus" (Enrique Molina, Argentina, 1910-1996). "Diafanidade de auroras refletidas em múltiplos espelhos / Deslumbramento de músicas cobrindo a montanha como um alto arvoredo / Seguindo seu curso de água naufragando um céu em cada enseada" (Emilio Westphalen, Peru, 1911-2001). "A cidade desvelada circula por meu sangue como uma abelha. (...) Deter-se um instante, deter meu sangue que vai e / vem, vai e vem e não diz nada, / sentado sobre mim mesmo como o iogue à sombra / da figueira, como Buda na margem do rio, deter / o instante, / um só instante, sentado na margem do tempo, / apagar minha imagem do rio que fala adormecido e / não diz nada e me leva consigo, / sentado na margem deter o rio, abrir o instante" (Octavio Paz, México, 1914-1998). "Minha figura estende-se em um rio calmo / Contido no longo plano do vale sob um céu / levemente azulado / À espera da subida dos peixes que desovarão em / minha cabeça" (Sérgio Lima, Brasil, 1939).
Há rio, há vida, há sangue pulsando nesses versos. Poesia "educada pela água", extensa, líquida, transbordante, mítica, onírica, a provocar delírios. Poesia excessiva, como a vida, aberta para o acaso. Poesia que mira o obscuro, o insólito, a "irrealidade" das coisas óbvias, e não teme a palavra, mas vasculha-a debaixo dos entulhos da civilização. Poesia que se assombra diante de tudo quanto a rodeia e busca uma resposta sobre a "abismática" natureza do Ser. Poesia que não se resigna diante da morte e de Deus e quer mudar a vida, melhorar o homem e se joga de cabeça no absurdo da condição humana. Poesia herética, feita por visionários, como Rimbaud, Novalis, Nerval, Lautréamont, Breton, Enrique Molina, Ludwig Zeller, Aldo Pellegrini, Octavio Paz, George Bataille, Ludwig Zeller, Murilo Mendes, César Moro, Claudio Willer, Roberto Piva, Sérgio Lima, Floriano Martins, Enrique Gomez-Correa e Vicente Franz Cecim (este não por acaso nativo da Amazônia, o último reduto da Imaginação), que ousaram lançar esse olhar sonâmbulo-amoroso-louco-mortífero-clarividente-latino-amazônico-bárbaro-banido-bandido-periférico-nordestino sobre o mundo.

*Nicodemos Sena
(Publicado no jornal "O Estado do Tapajós", PA, em 18.04.2002)